terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A verdade sobre o Auxílio-Reclusão

Um equívoco muito comum cometido por grande parte da população brasileira reside em acreditar e propagar a informação de que o valor do Auxílio-Reclusão (benefício previdenciário) é de R$915,05 (novecentos e quinze reais e cinco centavos) por cada filho, ou seja, segundo o credo popular, qualquer presidiário tenha por exemplo, dois filhos, sua família receberá da Previdência a monta de R$1.830,10 (hum mil e oitocentos e trinta reais e dez centavos). Ledo engano.
Basta dar uma pequena olhada nas redes sociais que você verá alguém indignado com tal valor a ser pago à família do preso, trazendo sempre a comparação do auxílio-reclusão, que segundo eles pensam, é de R$915,05 por cada filho, com a aposentadoria (seja por idade ou tempo de contribuição) que na maior parte dos casos é pago no valor de um salário mínimo (atualmente R$622).
A partir desta comparação, ficam indignados, fazendo críticas - infundadas - ao Brasil, que pagando tais valores à família do preso estaria cometendo uma grande injustiça social, uma vez que os aposentados receberiam apenas um salário mínimo, mesmo depois de ter trabalhado licitamente durante usa vida.
In casu, acredito que o erro cometido por grande parcela da sociedade brasileira reside em desconhecer a natureza jurídica de benefício previdenciário do auxilio-reclusão. 
Inicialmente, impende destacar que, ao contrário do que pensa e propaga o credo popular, o auxílio reclusão não é pago a TODAS às famílias de todos os presidiários, mas somente uma pequena parcela de familiares dos presidiários fazem jus ao referido benefício previdenciário (auxílio-reclusão), senão vejamos.
Como dito, da imensa população carcerária brasileira, aproximadamente 500.000 (quinhentos mil) presos, somente uma pequeniníssima (abusando dos superlativos, como diria o agregado José Dias da obra Machadiana) parcela de famílias fará jus ao auxilio-reclusão, que, cabe frisar, não é pago pelo Governo, mas é custeado pelo próprio preso (segurado) durante o período em que trabalhava remuneradamente (licitamente) e assim desta forma contribuía para a Previdência Social.
Ora, o auxilio-reclusão, por se tratar de um benefício previdenciário, somente será pago à família do preso (segurado) que contribuiu para a Previdência. Em outras palavras, não é qualquer família de preso que fará jus ao citado benefício, mas somente aquela cujo detento contribuiu para a Previdência Social, o que equivale a dizer que, caso alguém seja preso sem nunca ter contribuído para a Previdência, como por exemplo, um traficante de drogas, sua família NÃO terá direito ao auxilio-reclusão, pois aquele não é segurado, isto é, nunca contribuiu para o INSS.
Tendo em vista que a maior parte da imensa população carcerária de nossa Terra Brasilis é composta de condenados por crimes patrimoniais (furto, roubo, latrocínio, etc.) e por traficantes de drogas (estes na maioria esmagadora sem nunca terem trabalhado com carteira assinada e, assim, sem nunca terem contribuído para o custeio da previdência), podemos afirmar o auxílio-reclusão é pago a um número muito pequeno de famílias de presos.
Neste diapasão, dados recentes do Ministério da Previdência Social - MPS, do mês de maio de 2012, expedidos no Boletim Estatístico da Previdência Social* (link abaixo), mostram que apenas 35.348 (trinta e cinco mil e trezentas e quarenta e oito) segurados foram beneficiados com o auxílio-reclusão no Brasil, recebendo em média R$681,40, sendo que desse total de segurados, 31.927 foram enquadrados como "urbanos", recebendo R$690,27 (seiscentos e noventa reais e vinte e sete centavos), ao passo que apenas 3.421 foram enquadrados como "rural", recebendo a quantia de R$598,63 (quinhentos e noventa e oito reais e sessenta e três centavos). Outrossim, impende destacar, que os valores dispendidos a título de pagamento do auxilio-reclusão corresponderam a apenas 0,45% dos valores de benefícios previdenciários concedidos pela autarquia previdenciária.
Ademais, para se fazer jus ao auxilio-reclusão, não basta ter contribuído para a Previdência, é preciso que o segurado seja de baixa-renda, que segundo a legislação previdenciária é o segurado que recebe até R$915,05 (novecentos e quinze reais e cinco centavos), ou seja, caso um preso (segurado) que recebia mais do que esse valor, sua família não fará jus ao recebimento do referido beneficio previdenciário, pois não possui um dos requisitos, qual seja, ser de baixa renda (o preso receber até R$915,05).
Desta forma, percebe-se que não é qualquer família de preso que terá o direito ao auxílio-reclusão, mas somente a família daquele preso que contribuiu para a previdência social (trabalhando licitamente com carteira assinada, em regra) e que seja de baixa-renda, isto é, que receba valor igual ou inferior a R$915,05 (valor atualizado pela Portaria Interministerial MPS/MF 2, de 06.01.2012), pois se receber valor maior que este, NÃO fará jus ao auxílio-reclusão.
Por fim, a que se destacar, que a baixa renda a ser considerada para a concessão do auxílio-reclusão se refere ao segurado, NÃO a dos seus dependentes. Neste diapasão, IVAN KERTZMAN (2012, p.448) aduz que: "Havia, entretanto, uma grande discussão na jurisprudência se ao invés da renda do segurado, não poderia ser considerada a renda do dependente. O STF pacificou a questão, confirmando que a baixa renda que deve ser considerada é a do segurado e não a do seu dependente com a apreciação dos Recursos Extraordinários 486.413 e 587.365, reconhecendo a existência de repercussão geral".
Outrossim, há que se afirmar, que o benefício em epígrafe, durante o seu recebimento pelos dependentes do preso (segurado), não é cumulável com o recebimento de auxílio-doença e nem com a aposentadoria, sendo permitida, contudo, a escolha pelo benefício que seja mais vantajoso para a família do preso, conforme alerta Ivan Kertzman.
Diante o exposto, percebe-se que não ser injusto o recebimento do auxílio-reclusão pelos dependentes do preso (segurado), uma vez que ele é pago em decorrência das contribuições efetuadas pelo presidiário (segurado) através de seu trabalho lícito para a Previdência Social. Da mesma forma, ao contrário do que pensa a maior parte da população brasileira, é uma pequena parcela de dependentes dos segurados presos que farão jus ao auxílio reclusão, tendo em vista os requisitos acima explanados.



Referência
KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 9ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012.

*Disponível em: http://www.mpas.gov.br/arquivos/office/3_120706-111513-210.pdf. Acesso em 12 de dezembro de 2012.


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Ex-cônjuge tem direito à pensão por morte mesmo após renunciar aos alimentos

No Direito Previdenciário, para se fazer jus a algum benefício o indivíduo tem que ser segurado ou dependente.
Segurado obrigatório é aquele que exerce algum serviço lícito remunerado (como por exemplo, os empregados, domésticos, contribuinte individual, etc.) que os liguem ao sistema previdenciário, ou seja, quem exercer determinados serviços remunerados será obrigatoriamente vinculado ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS).
Outrossim, impende destacar, que existe uma hipótese, que apesar da pessoa não exercer nenhuma atividade remunerada, poderá optar por se vincular ao RGPS, estamos falando do Segurado Facultativo (como o estudante, a dona de casa, etc.), que deve ter pelo menos 16 (dezesseis) anos de idade para se vincular ao regime previdenciário.
Dependentes são as pessoas que possuem uma relação de dependência econômica com o segurado do RGPS, os quais, como dito anteriormente, poderão fazer jus ao recebimento de algum benefício previdenciário. Estes indivíduos podem ser beneficiados com a concessão de algum benefício previdenciário em virtude das contribuições efetuadas pelos segurados, aos quais são dependentes.
Impende destacar, que para algum dependente ter o direito ao recebimento de algum benefício previdenciário, mister se faz que ele não perca a qualidade de dependente.
Aqui é que reside o objetivo de nosso pequeno articulado, tratar da possibilidade de recebimento de benefício pelo ex-cônjuge.
Segundo o art. 17, inciso I, Decreto nº 3.048/99, a perda da condição de dependente ocorre, para o cônjuge, pela separação judicial ou divórcio, enquanto não lhe for assegurada a prestação de alimentos (...), isto é, a legislação previdenciária aduz que o ex-cônjuge mantém a condição de dependente, fazendo jus ao recebimento de algum benefício previdenciário, se receber pensão alimentícia. 
Da mesma forma, tal previsão também é aplicada à união estável (art.17, II, Decreto 3.048/99), ou seja, finda a união estável, caso o ex-companheiro receba prestação alimentícia também manterá a qualidade de dependente. Caso contrário, se não necessitar (receber) da referida prestação perderá a condição de dependente, não podendo, a partir daí, ser beneficiário de nenhum benefício do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social.
No caso de recebimento de pensão alimentícia, a legislação entende que, não obstante o término do vínculo conjugal ou da união estável, ainda permanece a dependência econômica, devendo permanecer a condição de dependente para o ex-cônjuge e ex-companheiro.
Ademais, a IN 45/2010 editada pelo INSS, em seu art. 323, §1º, aduz que "equipara-se à percepção de pensão alimentícia o recebimento de ajuda econômica ou financeira sob qualquer forma (...)".
Desta forma, observa-se que a citada IN 45/2010 possui um conceito de pensão alimentícia assaz amplo, beneficiando, desta forma, maior número de pessoas, uma vez que o recebimento de qualquer pequena ajuda econômica ou financeira é equiparada à percepção de pensão alimentícia.
Por fim, questão interessante que se coloca, é a do ex-cônjuge (e também do ex-companheiro) que durante o processo de divórcio renuncia à prestação alimentícia, porque naquele momento não necessitava de nenhuma ajuda econômica de seu consorte. Pegunta-se: após o término do vinculo, e tendo renunciado aos alimentos durante o procedimento, caso ele passe por necessidade econômica superveniente (ao divórcio ou separação), fará jus ao recebimento de algum benefício previdenciário?
Note-se que a condição de dependente apenas se mantém para o ex-consorte caso este receba pensão alimentícia, pois se não receber, perderá automaticamente sua condição de dependente após o término do vinculo conjugal, conforme previsão do art.17, incisos I e II do Decreto nº 3.048/99, vistos acima.
Todavia, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, tem posicionamento pacificado no sentido de que o ex-consorte que tenha renunciado aos alimentos tem o direito de receber pensão por morte caso comprove a necessidade superveniente (AgRg no AI nº 1.420.559 - PE)*. Digo entendimento pacificado porque foi sumulado (súmula nº 336): "A mulher que renunciou aos alimentos na separação judicial tem direito à pensão previdenciária por morte do ex-marido, comprovada a necessidade econômica superveniente".
Neste diapasão, mesmo que o ex-consorte tenha renunciado à pensão alimentícia, ele fará jus ao recebimento da pensão por morte caso comprove a ocorrência de necessidade econômica superveniente. 
Perfeito o entendimento sumulado do STJ, uma vez que o ex-cônjuge somente renunciou à pensão alimentícia porque à época do término do vínculo conjugal (ou separação) não tinha nenhuma necessidade econômica, tanto é que renunciou. 



Referência
KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 9ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2012.

A inelegibilidade contida na alínea “e” do art 1º da Lei da Ficha Limpa é uma farsa!


Logo abaixo vai o brilhante texto do professor José Orlando Rocha de Carvalho acerca da 

interpretação possível para a hipótese legal de inelegibilidade contida na alínea "e" da Lei da Ficha 

Limpa. Leitura obrigatória.



Elaborado em 09/2012.





A lei pretendeu estabelecer, exatamente, o seguinte: os condenados na primeira instância somente estariam inelegíveis após o trânsito em julgado, e os que fossem já condenados primevamente por órgão colegiado, já teriam sua inelegibilidade tracejada a partir da própria condenação.
Não se discute que a  grande vedete dessas eleições é a denominada Lei da Ficha Limpa. Aliás, ela pretendeu atender aos anseios de mais de 1,3 milhões de assinaturas de eleitores brasileiros, o que representa mais de 1% do eleitorado nacional.
Por outro lado, atendeu ainda à imprensa (tanto a chamada “nanica” quanto a grande imprensa) que a “glamourizou” ao ponto de acreditar que ela tivesse, realmente, o condão de impedir que criminosos contumazes obtivessem  condições de elegibilidade.
Também a maioria dos juristas da nação (mesmo os especializados em Direito Eleitoral)  proclamaram a sua crença na eficácia da novel legislação, ainda que eventualmente demonstrassem certa indignação por conta de eventuais violações ao principio de ampla defesa e do contraditório.
Nada mais ingênuo, no entanto. Como ingênua, até, foi a indignação do ilustre ministro Carlos Ayres Britto, atual Presidente do STF, quando, acreditando nessa Lei, durante o debate do julgamento da Lei da Ficha Limpa indagou se “uma pessoa que desfila pela passarela quase inteira do Código Penal, ou da Lei de Improbidade Administrativa, pode se apresentar como candidato?
Na verdade o Congresso Nacional nada mais fez do  que dar um “zignal” em todos que acrediditavam na seriedade e sinceridade da citada lei.
Se bem examinado, por via de um processo hermenêutico adequado, ver-se-á que mesmo os homicidas, os latrocidas, os estupradores, os ladrões, ainda que com condenação mantida pelos Tribunais, continuam com a possibilidade de se candidatarem a qualquer cargo eletivo.
Como se pode observar, a interpretação comum de que esses estariam inelegíveis, decorre da má avaliação e interpretação equivocada do preceito legislativo contido na alinea “e” do art 1º. da LC 135/10.
Senão, vejamos. O preceito aludido expressa, exatamente, que estariam inelegíveis:
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 
Tendo em vista que não se pode interpretar preceito que restringe um direito inerente à cidadania (como é o de se apresentar candidato), de forma elástica, é de se buscar, nesta hermenêutica, uma interpretação estrita: é o que se contém no preceito e nada mais.
É evidente, por conseguinte, que há, no preceito invocado (alinea “e” do art 1º. da LC 135/10) um trato duplo da matéria, no tocante à decisão condenatória que levaria à inelegibilidade ... e sua incidência depende do juízo prolator da decisão originariamente proferida.
Significa dizer que a premissa básica para  buscar-se o sentido e o objetivo da norma, seria a necessária distinção entre a decisão condenatória proferida por juízo singular e a decisão condenatória prolatada (ou proferida) por juízo colegiado - para dispensar-se, quanto a este último, o trânsito em julgado.
A decisão condenatória, portanto, prolatada por órgão judicial singular, ou de primeiro grau, remete, obrigatoriamente, à necessidade de seu crivo pelo Tribunal ao qual cabe a reapreciação do julgado, em virtude de sua função constitucional de órgão revisor.
Já a referência à decisão condenatória proferida por órgão colegiado direciona, necessariamente, a compreensão de acórdão proferido em ação penal originária, ou seja, a uma condenação obtida diretamente pelo Tribunal, não em razão de sua função revisora, mas sim de sua competência originária  de julgamento, sem que tenha havido anterior julgamento por qualquer instância antecedente.
Pontua-se, assim, que a única interpretação plausível para o citado dispositivo da LC, é a de que somente existem duas formas de aplicação do estatuído na alínea “e” do Inciso I, do Art. 1º. da Lei Complementar 64/90, quais sejam:
a) Os condenados em processos iniciados no juízo singularsomente não teriam assegurada a sua condição de elegibilidade após o TRÂNSITO EM JULGADO da decisão condenatória de primeiro grau; e
b) Os condenados em processos originariamente iniciados em órgão judicial colegiadojá estariam inelegíveis desde a condenação na aludida AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA, não necessitando, portanto, do TRÂNSITO EM JULGADOpara a sua eficácia.
E esse entendimento é facilmente obtido da própria  redação da alínea “e” em comento.  Ora, ao estabelecer que estariam inelegíveis “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, a lei criou uma duplicidade de situações. A primeira, que se refere aos que forem condenados em “decisum” de primeiro grau (cuja inelegibilidade somente  ocorreria somente quando do trânsito em julgado desta condenação originária), e a segunda daqueles cuja condenação originária era obtida diretamente do julgamento do Tribunal em ação penal originária (caso de prefeitos, deputados estaduais ... e outros detentores de foro privilegiado).
E esta é a única interpretação possível, diante da dualidade de situações previstas na lei. “condenados em decisão transitada em julgado, ou proferida por orgão colegiado”. Afinal, é elementar que as conjunções disjuntivas exprimem exclusão ou alternativa.
Como se verifica, o preceito legal é alternativo ou disjuntivo, tanto que a lei se utiliza da partícula “OU” para definir as duas situações distintas e excludentes entre si. O que significa dizer que a lei pretendeu estabelecer, exatamente, o seguinte: “os condenados na primeira instância somente estariam  inelegíveis após o trânsito em julgado, e os que fossem já condenados primevamente por órgão colegiado, já teriam sua inelegibilidade tracejada a partir da própria condenação”.
É óbvio que esta é a interpretação mais consentânea e adequada, porquanto não se pode entender que a lei seja antinômica e contraditória dentro do contexto de um mesmo preceito legal. D’outro lado não se pode admitir que a lei contenha palavras inúteis. Ora, como se pode admitir que a lei fale em “trânsito em julgado” e ao mesmo tempo mencione “decisão proferida por órgão colegiado sem trânsito em julgado”? Se a lei pretendesse tornar inelegível quem já tivesse condenação mantida por órgão colegiado, teria mencionado a expressão “trânsito em julgado” em sua parte inicial? Então a expressão “trânsito em julgado” seria preceito inútil contido na lei? Então teriamos “palavras inúteis” na Lei?
Se realmente a lei pretendesse inabilitar o que tivesse sua condenação mantida por Tribunal, iria consignar “trânsito em julgado” quando se referiu à condenação inicial? Então qual a utilidade desta expressão “trânsito em julgado”? NENHUMA ? ... Obviamente que não.
A entender-se que uma mesma condenação ora necessite de “trânsito em julgado” e ao mesmo tempo prescinda ou dispense o “trânsito em julgado” então estariamos diante de uma aporia e de uma contradição dialógica inexpugnável. É o mesmo que admitir-se que o “vivo esteja morto” e o “morto esteja vivo”, ao mesmo tempo.
Seria admissível essa alteridade terminológica na Lei, e, pior... num mesmo preceito legal?... Não! Entendemos que não, até porque se assim o admitissemos, estaríamos admitindo a possibilidade de presenciarmos o “mal  vir de braços e abraços com o bem num romance astral”, para parodiar o nosso saudoso Raul Seixas em sua famosa e melódica canção “O Trem das sete”.
E, porquanto inadmite-se a possibilidade desta absurda “contradictio in terminis” na disposição legal em comento, é que se busca resolver esta aporia através de uma possibilidade interpretativa que seja mais consentânea com a efetiva hermenêutica do texto legislado. E esta possibilidade perpassa pelo exame do texto dentro de sua efetiva conformação dialética.
O que a lei pretende dizer com  “condenados em decisão transitada em julgado, ou proferida por orgão colegiado”, finalmente? A única hermeneutica plausível é, exatamente, a de que a lei quer dizer, no preceito inicial, ou, seja, na parte inicial de seu preceito (condenados em decisão transitada em julgado)que somente estariam inelegiveis aqueles que, condenados em decisão de juízo singular, tivessem sido atingidos pela pecaminosa “pecha” jurídica do “trânsito em julgado” desta decisão condenatória. Já a segunda parte do preceito (ou proferida por orgão colegiado), quer significar, exatamente, aqueles que tiveram sua condenação diretamente lançadas por um Tribunal judicial, em virtude de decisão tomada em ação penal originária.
Essa possibilidade interpretativa ainda mais se avulta se examinarmos detidamente o preceito legal.  Como se constata, a lei menciona:  condenados em decisão transitada em julgado, ou proferida por orgão colegiado.  Ora o que significa “proferida”? Seria o mesmo que “mantida”?
Como se sabe o tribunal atua de duas formas no âmbito de suas funções constitucionais: ora como orgão revisor (em sua competência recursal) ou como orgão julgador (em sua competência jurisdicional originária). Na primeira, enquanto órgão revisor, ele simplesmente  ou nega provimento aos recursos, ou seja mantém ou reforma as decisões da primeira instância (competência derivada). Na segunda face de sua atuação, ele já atua como órgão julgador de primeiro grau, dada a sua competência originária para o julgamento dos beneficiários de privilégios de foro especial. E, neste caso, ele profere decisões iniciaisdcondenação ou absolvição, tal qual o faz o juiz de primeira instância.
Destarte, e fixados esses paradigmas atuacionais, poderíamos dizer que com relação às condenações dos juizes de primeiro grau, o Tribunal apenas mantém ou reforma aquelas decisões condenatórias. No entanto, em relação aos processos de sua competência originária, o Tribunal profere condenação ou absolvição.  Assim, e já que proferir tem significado diferente do vocábulo manter, tem-se como inarredável a percepção (aliás bastante elementar), de que se a lei pretendesse dizer que estaria inelegível aquele que teve seu recurso improvido pelo Tribunal em face de ter mantido a decisão do juízo “a quo”, a lei não teria utilizado o termo “proferida”, mas, sim, “mantida”. E, se a lei falou “proferida” é porque quis estabelecer, exatamente, que se referia a decisão tomada colegiadamente, em decisão colhida no exercício de sua atividade jurisdicional penal originária e não no âmbito de sua competência derivada.
Demais disso, é imperioso salientar que  CONDENAÇÃO PROFERIDA é noção DIFERENTE DE CONDENAÇÃO MANTIDA. Condenação proferida é decisão originária e inicial. Decisão condenatória mantida é aquela que  presupõe necessariamente uma condenação originária até porque só se mantém condenação que já foi anteriormente proferida. Portanto, é decisão derivada e ulterior.
Seguindo a mesma trilha hermenêutica é de ser observado que quando a lei (al. “a” do art 1º. da LC. 135/10) menciona   “proferida por orgão colegiado” a aludida preceituação legal pretendeu, exatamente, estabelecer que a causa de inelegibilidade é sem dúvidas, a condenação obtida originariamente no Tribunal e não aquela que resulta da manutenção do decidido na instância de piso.   Isto porque se examinarmos o preceito numa dimensão lógica - e até mesmo teleológica -, fica evidente que a terminologia “proferida” está correlacionada com o termo  “condenação” e não com o termo “decisão”.
Senão, vejamos o texto legal: os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”. Ora, nada mais evidente de que quando a lei fala em “proferida por órgão judicial colegiado”, quer especificamente estabelecer: “os que forem condenados, em decisão proferida por órgão judicial colegiado” e não os que tiverem “mantida” a “condenação proferida por outro órgão” jurisdicional de calibre inferior.
Qualquer outra interpretação desafia o bom senso ou a lógica do razoável (logos de lo razonable) de que nos falava Recaséns Siches. Se assim não fosse, a lei diria expressamente: “os que forem condenados e cuja decisão seja mantida por órgão colegiado”  ou ainda, (para os casos em que a decisão viesse a transitar em julgado por falta de recurso da sentença do juizo de primeiro grau): “os que forem condenados com trânsito em julgado em única instância ou cuja decisão seja mantida por órgão colegiado
Finalmente, é de se concluir que se a lei assim não estabeleceu e prescreveu que a inelegibilidade se daria em face de decisão condenatória PROFERIDA por órgão colegiado, então a única resposta possível (ou a única resposta correta de que nos falava Ronald Dworkin, em sua obra “Levando os Direitos à Sério”), é a de que a mencionada disposição legislativa quis exatamente vincular este caso de inelegibilidade àquela situaçâo em que o candidato fosse condenado originariamente por um Tribunal Judicial (TJ’s Estaduais – TRF’s - STM, STJ, STF ) nos casos de sua competência julgadora originária.
Portanto, a conclusão a que se chega é a de que o Congresso Nacional enganou a Nação, editando uma Lei que, aparentemente, atendia às expectativas dos milhões de brasileiros signatários da proposta de lei de iniciativa popular, mas, na verdade, construiu um belo engodo legislativo que não há “salto triplo carpado hermenêutico” (para se utilizar, mais uma vez, de outra expressão do Ministro Carlos Ayres Britto), que possa sustentar a idéia de inelegibilidade, em casos que tais.


Referência
CARVALHO, José Orlando Rocha de. A inelegibilidade contida na alínea “e” do art 1º da Lei da Ficha Limpa é uma farsa! O Congresso Nacional enganou a nação. Jus Navigandi, Teresina, ano 17n. 33557 set. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22572>. Acesso em: 7 dez. 2012.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Mensalão, domínio do fato e Claus Roxin


LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*




                            












Joaquim Barbosa (acompanhado por vários outros ministros) condenou José Dirceu sob o argumento de que ele tinha o comando da organização. Isso basta para condenar alguém? Foi o que a Folha de S. Paulo (de 11.11.12, p. A6) perguntou ao professor Claus Roxin (maior penalista vivo no planeta e autor da teoria do domínio do fato), que enfatizou:

“A participação no comando de esquema tem de ser provada”, ou seja, não basta ocupar posição de comando na organização, visto que a teoria do domínio do fato, invocada no caso mensalão, também exige prova da participação efetiva do agente nos fatos. Quem está na posição de comando e dá a ordem para o cometimento do crime, não pode ser considerado mero partícipe, sim, é autor, porque tem o domínio do fato.

No direito penal clássico considerava-se autor somente quem realiza o verbo núcleo do tipo (quem mata, quem subtrai, quem faz gestão fraudulenta etc.). Todos os demais que contribuem para o delito seriam partícipes.

Contra isso se insurgiu Roxin, que achava injusto punir como partícipe quem tem o comando do fato. Para ele é autor do fato não só quem executa (quem pratica o verbo núcleo do tipo), senão também “quem tem o poder de decidir sua realização e faz o planejamento estratégico para que ele aconteça”.

Mas tudo depende de prova (prova de que planejou, prova de que comandou, prova de que mandou executar etc.). Não basta ter o comando do grupo, ter posição de chefe da organização etc. “Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado”. Sua doutrina foi usada na Argentina, no Peru e na própria Alemanha (para julgar os crimes da Alemanha Oriental).

Sintetizando: não basta ter o comando da organização. “É indispensável ter comando o fato, emitido a ordem”. “A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção (“dever saber”) é do direito anglo-saxão e não a considero correta.”

A pressão da opinião pública (leia-se: da mídia e da opinião pública midiatizada) pode influenciar o juiz?

“Na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública” [sempre].

Nesta última advertência do professor Claus Roxin reside o antídoto contra o populismo penal midiático. Nenhum juiz tem compromisso de atender sempre a opinião pública. Seu compromisso é com o direito e com a justiça. Quando o direito e o justo não correspondem ao que o público desejaria, cabe ao juiz emitir uma sentença contramajoritária. Mas não é isso que estamos vendo, em vários momentos, no julgamento do mensalão, que é histórico, necessário, moral e eticamente importante. Mas que em muitos momentos está deslizando para o populismo penal, quando, por exemplo, negou o duplo grau de jurisdição, violando decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 2009 (caso Barreto Leiva).

*LFG – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.professorlfg.com.br.