sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Caso Dorothy Stang: Erros técnicos-jurídicos na sentença que condenou VITALMIRO BASTOS DE MOURA


Ontem, no dia 19 de setembro de 2013, foi concluído o julgamento do mandante do homicídio praticado em 2005 contra a missionária Dorothy Stang, tendo VITALMIRO BASTOS DE MOURA sido condenado pela 2ª Vara do Tribunal do Júri de Belém/PA à pena de 30 (trinta) anos de reclusão (link abaixo).
Ocorre que, da análise cuidadosa da sentença condenatória, verifica-se que a mesma possui erros técnicos-jurídicos, os quais acabaram por acarretar uma reprimenda mais dura do que a que seria devida, considerando-se a fundamentação esposada.
Insta registrar, que o Conselho de Sentença reconheceu a presença de 2 (duas) qualificadoras, quais sejam, a da promessa de recompensa (art.121, §2º, I, Código Penal) e a que dificultou ou impossibilitou a defesa da vítima (art.121, §2º, IV, CP). Outrossim, fora reconhecida ainda a agravante do art.61, II, "h", do CP, ante a vítima possuir mais de 60 (sessenta) anos.
Passemos a analisar a fundamentação do édito condenatório. 
Inicialmente, calha destacar, que das 6 (seis) circunstâncias judiciais consideradas desfavoráveis ao réu, 3 (três) delas foram valoradas (negativamente) indevidamente, senão vejamos.
A primeira delas foi a conduta social do réu. Segundo trecho da sentença, "CONDUTA SOCIAL e PERSONALIDADE, entendo voltadas para a violência, além de perversa e covarde, demonstrando ser o corréu pessoa inadaptada ao convívio social por não vicejarem no seu espírito sentimentos de amor, amizade, generosidade e solidariedade para com o semelhante, colocando acima de qualquer valor relevante suas pretensões patrimoniais".
Da análise do referido trecho, vê-se claramente que foram "misturados" os conceitos de conduta social (do réu) e personalidade, ambas circunstâncias judiciais previstas no art.59 do CP. Da fundamentação exposta acima, a mesma serviria apenas para justificar o recrudescimento da personalidade, jamais a da conduta social.
Isto porque, a conduta social se refere ao sentimento que a comunidade tem sobre o réu, como por exemplo, se é bem visto em sua comunidade, considerado amigo pela vizinhança, um bom pai, se é querido no trabalho, etc. A fundamentação usada acima, assim, nada tem a ver com conceito de conduta social aceita pacificamente pela doutrina e jurisprudência pátrias. Neste sentido, ao discorrer sobre a conduta social, GUILHERME DE SOUZA NUCCI ensina que:

É o papel do réu na comunidade, inserido no contexto da família, do trabalho, da escola, da vizinhança, dentre outros, motivo pelo qual além de simplesmente considerar o fator conduta social preferimos incluir a expressão inserção social. Não somente a conduta antecedente do agente em seus vários setores de relacionamento, mas sobretudo o ambiente no qual está inserido são capazes de determinar a justa medida da reprovação que seu ato criminoso possa merecer. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.200/201). (negritei)

Assim, o aumento decorrente pela valoração negativa da conduta social constitui-se em deslize técnico-jurídico.
Outro deslize ocorrido no processo dosimétrico foi valorar negativamente as circunstâncias do crime, colhe-se da sentença o seguinte: "(...) As CIRCUNSTÂNCIAS desfavoráveis ao mesmo, e as CONSEQUÊNCIAS do crime entendo graves, pois foi ceifada a vida de um ser humano". - sublinhei.
Ora, da análise do trecho referente às circunstâncias, observa-se claramente que não há nenhuma fundamentação concreta, havendo somente a afirmativa de que as circunstâncias são negativas, mas, frise-se, sem declinar nenhum fundamento apto a justificar o recrudescimento da sanção penal. Sobre o tema, RICARDO SCHMITT afirma que: "A sentença que não fundamenta sua valoração das circunstâncias do crime ou que não indica os elementos concretos que formaram o convencimento do juiz quanto a essa valoração padece de nulidade". (Sentença Penal Condenatória. 7ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.138).

Assim, no caso da valoração negativa das circunstâncias do crime o erro técnico-jurídico se deu porque não houve fundamentação concreta no édito condenatório. Pergunta-se. Poderia ter sido utilizada corretamente? Poderia, mas não o foi porque não houve fundamentação em dados concretos do processo.
O outro deslize foi considerar a morte da vítima como consequência desfavorável ao réu num crime de homicídio. Ora, a morte da vítima é consequência natural no delito de homicídio, logo, não pode ser valorada pelo juiz no momento da fixação da pena, sob pena de odiável dupla apenação (bis in idem), vedado em nosso ordenamento jurídico. Nessa senda, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, leciona:

O mal causado pelo crime, que transcende o resultado típico, é a consequência a ser considerada para a fixação da pena. É lógico que num homicídio, por exemplo, a consequência natural é a morte de alguém e, em decorrência disso, uma pessoa pode ficar viúva ou órfã. Diferentemente, um indivíduo que assassina a esposa na frente dos filhos menores, causando-lhes um trauma sem precedentes, precisa ser mais severamente apenado, pois trata-se de uma consequência não natural do delito. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.226). - negritei

Como se sabe, o bem jurídico tutelado no delito de homicídio é a vida do indivíduo, razão pela qual, ante a gravidade da violação de tal bem jurídico e, assim, a causação da morte (decorrência natural no crime de homicídio) de alguém, o legislador fixou para o homicídio uma das maiores penas para os infratores da lei penal. Dissertando sobre a função limitadora do bem jurídico no que se refere à aplicação da pena, o insigne professor de Direito Penal da USP, DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO ensina que:

É defeso ao magistrado elevar a sanção, no trabalho de motivação e aplicação da pena, em razão da virulência do ataque ou da gravidade de lesão ao bem jurídico, tomando circunstâncias já consideradas no tipo incriminador. Se assim o fizer, incidirá no bis in idem, repetindo para a gravidade do crime a modalidade ou o grau de intensidade da ofensa, ambos já considerados e avaliados pelo legislador ao fixar a quantidade da pena mínima. (Dosimetria da Pena: causas de aumento e diminuição. 1ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.42).

Ora, considerar a morte da vítima no crime de homicídio como consequência desfavorável é claro bis in idem, pois o legislador, ante as graves consequências deste crime (morte de alguém), no primeiro momento de individualizar a pena (fase legislativa), fixou para este delito uma das maiores reprimendas, basta ver o homicídio qualificado (art.121, §2º, I a V, do CP), no qual a pena mínima é de 12 (doze) anos e o máximo é de 30 (trinta) anos de reclusão.
Assim, suprimindo da condenação de VITALMIRO BASTOS estas 3 (três) circunstâncias judiciais (leia-se: conduta social, circunstâncias e consequências do crime), tem-se que a pena-base deveria ter sido fixada em 18 (dezoito) anos  e 07 (sete) meses de reclusão.
Outrossim, na 2ª fase do processo dosimétrico da pena, ante a incidência da agravante constante do art.61, II, "h" do CP (vítima maior de 60 anos), com um aumento do ideal imaginário de 1/6 (um sexto), a pena provisória chegaria a 21 (vinte e um) anos e 07 (sete) meses de reclusão.
Ademais, há ainda outra agravante a ser aplicada. Explica-se, como é cediço, diante da existência de mais de 1 (uma) qualificadora - in casu, foram reconhecidas 2 (duas) pelo Conselho de Sentença -, uma serve para qualificar e a outra para usar como circunstância agravante, desde que esteja prevista no rol do art.61 ou art.62 do CP. É justamente o caso da qualificadora do art.121, §2º, IV, CP, que possui uma agravante correspondente no art.61, II, "c", do CP.
Se não houvesse previsão da qualificadora como agravante, ela deveria ser analisada na análise das circunstâncias judiciais, notadamente na análise das circunstâncias, tendo em vista que todas as circunstâncias que envolvem o fato delituoso devem ser consideradas para fins de fixação da pena.
Assim, aplicando-se esta segunda agravante (1/6), a pena definitiva de VITALMIRO BASTOS chegaria a 24 anos e 07 (sete) meses de reclusão (ante a ausência de causas de aumento ou diminuição da pena), em total respeito aos ditames do Sistema Trifásico de aplicação da pena e ao princípio constitucional da individualização da pena (art.5º, XLVI, Carta Política de 1988).









A pena mínima do crime de estupro deveria ser de pelo menos 8 (oito) anos de reclusão


Infelizmente, ao contrário do que muita gente pensa, quem comete o gravíssimo crime de estupro - frise-se, em sua forma simples: art.213 do Código Penal: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - Reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos" - costuma (isto é, na maioria das vezes) ter sua pena definitiva fixada no mínimo legal, qual seja, 6 (seis) anos de reclusão.
Para quem conhece nosso Sistema de Aplicação da Pena, constante no art.68 c/c com o art.59, todos do Código Penal brasileiro, sabe que grande parte (diz-se em grande parte, pois, em homenagem ao princípio da individualização da pena (art.5º, XLVI, CF/88), a pena de cada caso vai depender das circunstâncias objetivas e subjetivas de cada criminoso e dos crimes praticados) dos estupradores acaba por ter sua pena fixada no montante mínimo, ou seja, de 6 (seis) anos.
Tal constatação é relevante e possui grave consequência jurídica, frise-se, não sabido pela maioria da população brasileira, qual seja, devido a fixação da pena em seu patamar mínimo (seis anos), o condenado NÃO IRÁ para o regime fechado de cumprimento da pena, mas para o regime semi-aberto, tendo em vista que sua pena fora fixada em quantidade inferior a 8 (oito) anos de reclusão, nos termos do art.33, §2º, do Código Penal: "As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: (...) b) o condenado não reincidente cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;"
Assim, ao invés do condenado por estupro ir cumprir sua pena no presídio (regime fechado), ele irá para o regime semi-aberto, onde cumprirá a pena numa colônia penal (art.35, §1º, CP), sendo possível ainda exercer trabalho externo e ainda, a participação em cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau e superior fora da referida colônia penal (art.35, §2º, CP).
Essa é a regra. A exceção fica por conta do condenado reincidente, pois, mesmo que sua pena tenho sido fixada em 6 (seis) anos, o que vale também no caso do estupro, ele deverá iniciar o cumprimento da sanção corporal em regime fechado. Reincidente é o indivíduo que vem a praticar novo crime antes de passar pelo menos 5 (cinco) anos após o trânsito em julgado que o condenou anteriormente, seja no Brasil ou no estrangeiro, pela prática de algum outro delito, conforme se depreende da leitura conjunta dos arts.63 e 64 do Código Penal.
Desta forma, é preciso deixar claro, que em regra (desde que o condenado não seja reincidente), o condenado por estupro não irá iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado (no presídio), isto porque, o juiz, ao fixar a pena analisando as circunstâncias constantes do art.59 do Código Penal (bem como as demais fases) - atente-se, partindo sempre do montante mínimo (seis anos) -, em grande parte dos casos não conseguirá aumentar a pena até 8 (oito) anos ou mais, hipótese em que o condenado por estupro começaria a cumprir sua pena em regime fechado.
A nosso ver, o problema não está no Sistema da Fixação da Pena, mas sim na ausência de proporcionalidade da pena mínima atribuída ao crime de estupro, qual seja, de apenas 6 (seis) anos de reclusão.
Como é cediço, o delito do estupro é uma conduta socialmente repugnante e considerada gravíssima por toda a sociedade brasileira, sendo um dos crimes que mais chocam por sua virulência, chegando ao ponto dos demais presidiários (e/ou criminosos) não aceitarem de forma nenhuma quem pratica o referido crime.
Por outro lado, não podemos esquecer que o delito de estupro - ante a enorme gravidade de suas consequências no seio da sociedade e principalmente para as vítimas, as quais em sua grande maioria passam a conviver com problemas psicológicos e de relacionamento - é considerado crime hediondo, nos termos do art.1º, inciso V, da Lei nº 8.072/1990.
Assim, temos que a pena mínima do crime de estupro não é proporcional à enorme gravidade da referida conduta delituosa. Como se sabe, a pena a ser atribuída pelo legislador para determinada conduta considerada criminosa deve guardar proporcionalidade com a conduta violadora da lei penal incriminadora, o que, a nosso ver, não acontece com pena mínima do delito de estupro em sua forma simples. Sobre a proporcionalidade, LUIZ REGIS PRADO ensina que:

O princípio da proporcionalidade (poena debet commensurari delicto), em sentido estrito, exige um liame axiológico e, portanto, graduável, entre o fato praticado e a cominação legal/consequência jurídica, ficando evidente a proibição de qualquer excesso. [...]
(...)
Em resumo, a pena deve estar  proporcionada ou adequada à intensidade ou magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à periculosidade criminal do agente. (Curso de direito penal brasileiro - Parte Geral. 10ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.151).

Na mesma senda, sobre a proporcionalidade, FERNANDO CAPEZ leciona que, in verbis:

Além disso, a pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividade distintas, ou para infrações dolosas e culposas. (Curso de Direito Penal - Parte Geral. 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.40). - negritei

Outro não é o entendimento de GUILHERME DE SOUZA NUCCI:

Ao elaborar tipos penais incriminadores deve o legislador inspirar-se na proporcionalidade, sob pena de incidir em deslize grave, com arranhões inevitáveis a preceitos constitucionais. Não teria sentido, a título de exemplo, prever pena de multa a um homicídio, como também não se vê como razoável a aplicação de pena privativa de liberdade elevada a quem, com a utilização de aparelho sonoro em elevado volume, perturba o sossego de seu vizinho. [...]
(...)
A tarefa do criador da norma penal é, baseando-se na proporcionalidade das sanções penais destinadas aos crimes praticados, estipular as penas. (Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.40)

Desta forma, temos que a fixação da pena do delito de estupro (na sua forma simples, isto é, a do caput do art.213 do CP) pelo legislador brasileiro à margem mínima de 6 (seis) anos viola o princípio constitucional da proporcionalidade. A nosso ver, a pena mínima deveria ser de pelo menos 8 (oito) anos, tal como já é previsto para o estupro qualificado (art.213, §§ e 1º e 2º do Código Penal) e para o Estupro de Vulnerável (art.217-A do CP), o que em regra acarretaria aos condenados por estupro começarem a cumprir a pena em regime fechado, nos termos do art.33, §2º, "a", do Código Penal.







segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A venda de CDs e DVDs "piratas" não deve continuar a ser considerada crime


"Passeando" pelo facebook neste domingo (08 de setembro de 2013), li um post (link abaixo) que me chamou bastante a atenção, o qual tinha o seguinte título: "Venda de CDs e DVDs piratas não é infração penal".
Como é sabido, a comercialização de produtos "piratas" (falsificados) é considerada crime pela legislação brasileira, conforme teor do §2º do art.184 do Código Penal: "Na mesma pena do §1º (Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa) incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente".
De acordo com o referido post, a justiça de 1º Grau do Estado de Goiás absolveu uma mulher denunciada por expor à venda cerca de 727 (setecentos e vinte e sete) CDs e DVDs, todos falsificados.
Segundo a peça acusatória, no dia 04 de fevereiro de 2010, a denunciada P. M. S. estava com a citada quantidade de produtos falsificados expostos à venda na cidade de Goiânia, sendo que, por volta das 18:40 hs, a mesma tentou fugir após perceber a presença da polícia, ocasião em que fora presa em flagrante por violação ao art.184, §2º do CP. Todos os produtos falsificados foram apreendidos.
Realizada a instrução processual, o Ministério Público requereu a condenação nos termos da denúncia, ao passo que a defesa pediu a absolvição pelo reconhecimento do princípio da insignificância.
Ocorre que, o juiz sentenciante, ADEGMAR JOSÉ FERREIRA, no dia 30 de agosto de 2013, prolatou uma sentença absolutória, haja vista o reconhecimento do princípio da adequação social. Calha trazer à baila trecho de referido decisum, in verbis:

Diante deste contexto, não pairam dúvidas de que a acusada efetivamente perpetrou o fato que lhe é imputado na exordial acusatória.
Contudo, ainda será preciso analisar a adequação típica deste agir, isto é, se a comercialização de cópias não autorizadas de CDs/DVDs caracteriza infração penal, mormente considerada a sua nítida aceitação social.
(...)
A teoria da adequação social foi concebida pelo grande jurista e filósofo alemão HANS WELZEL, que preconiza a ideia de que, apesar de uma conduta se subsumir ao tipo penal, é possível deixar de considerá-la típica quando socialmente adequada, isto é, quando estiver de acordo com a ordem social. É possível afirmar que, em razão da sua aplicação, não são consideradas típicas as condutas praticadas dentro do limite de ordem social normal da vida, haja vista serem compreendidas como toleráveis pela própria sociedade.
(...)
Basta caminhar pelo centro de Goiânia para se encontrar milhares de pessoas comprando CDs e DVDs falsificados ('pirateados', como são conhecidos popularmente) com toda tranquilidade, uma vez que não encaram a prática de maneira criminosa ou mesmo imoral. Aliás, para boa parte da população esta é uma das únicas formas de se adquirir produtos que visem a formação de seu capital cultural. É sabido que existem grandes gravadoras e produtoras que controlam a criação, produção e circulação dos produtos de entretenimento, ademais da altíssima taxa tributária, impedindo que as parcelas mais pobres tenham acesso à produção artística e cultural.

O mais absurdo é que camadas mais elevadas da sociedade patrocinam o suposto crime em tela, diuturnamente, através da 'internet', 'ipods', 'iphones' e outros. Carros luxuosos dotados de equipamentos habilitados à reprodução de músicas em formato digital ('MP3'), as quais, são 'baixadas' de 'sites' da 'internet', sem qualquer valor adimplido aos detentores dos direitos autorais, circulam livremente pela cidade. Crianças e adolescentes de classes mais abastadas, circulam com seus 'Ipods', 'Ipads', 'Iphones' e aparelhos outros, ouvindo canções que foram objeto de 'download' nas mesmas circunstâncias.

Mas contra tais pessoas, existe algum tipo de coerção estatal? Há nota da expedição de mandado de busca e apreensão a residências de pessoas que realizam gravação de mídias deste gênero, em violação ao art. 184, 'caput', do CP? Algum condutor de veículo, que tenha sido alvo de abordagem de rotina pela atividade policial, flagrado fazendo uso de mídia 'pirateada', foi criminalmente autuado na forma do art. 184, 'caput', do CP?

Jamais. Pois, o fato é que em sua grande maioria, a reprimenda penal é direcionada e investida contra as classes baixas. Desta forma que as condutas imorais típicas das classes despossuídas são tipificadas nos estatutos penais, como o furto, roubo, falsificação e etc.. Enquanto as práticas imorais típicas das classes possuidoras, não são tipificadas, ou quando o são tem penas brandas, como os crimes tributários ou contra o meio ambiente, e amiúde, são precisamente estes os crimes em que a afetação social é maior, tendo em vista que toda a população é prejudicada. Para ficar em um exemplo, temos o jogo do bicho, que notoriamente leva à ruína, sem qualquer controle, milhares de pessoas todos os anos, mas que não passa de uma contravenção penal.

Logo, precisamente aquelas que não conseguiram, ou muitas vezes foram impedidas, de se encaixar no mercado de trabalho formal e buscaram sustento no comércio informal, acabam sendo reprimidas pela legislação penal simbólica e voltada, exclusivamente, à tutela de grupos econômicos específicos, como forma de controle social de determinadas parcelas sociais. LUIZ FLAVIO GOMES e ANTONIO GARCIA-PABLOS DE MOLINA, com muita propriedade, lecionam sobre o tema:

O controle social é altamente discriminatório e seletivo. Enquanto os estudos empíricos demonstram o caráter majoritário e ubíquo do comportamento delitivo, a etiqueta do delinquente, sem embargo, manifesta-se como um fator negativo que os mecanismos de controle social repartem com o mesmo critério de distribuição dos bens positivos (fama, riqueza, poder etc.): levando em conta o status e o papel das pessoas. De modo que as 'chances' ou 'riscos' de ser etiquetado como delinquente não dependem tanto da conduta executada (delito), senão da posição do indivíduo na pirâmide social (status). Os processos de criminalização, ademais, vinculam-se ao estímulo da visibilidade diferencial da conduta desviada em uma sociedade concreta, isto é, guiam-se mais pela sintomatologia do conflito que pela etiologia do mesmo (visibilidade versus latência). [GARCÍA-Pablos de Molina, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.]
Atualmente, é normal estarmos em bares, restaurantes, feiras, na rua, e nos depararmos com indivíduos vendendo objetos pirateados - e não é segredo para ninguém a origem falsificada de tais produtos. A reação da sociedade não é de rechaço para com essa ação, pelo contrário, é aceito com normalidade. 
(...)

Além da reação popular de não repudiar a ação, vemos também a manifestação de diversos artistas que reconhecem que a pirataria serve como propaganda de seus trabalhos. Exemplo disso é o que afirmou o ilustre escritor internacionalmente renomado, Paulo Coelho, em seu blog paulocoelhoblog.com, em 2012 (original em inglês, tradução em http://blogs.estadao.com.br/link/paulo-coelho-defende-pirataria-e-ataca-sopa/):

(...)

Esta não é, de nenhuma maneira, uma prática rechaçada pela sociedade de modo expresso, notório, tendente a justificar a contundente intervenção penal.

Assim sendo, transparece que a prática ilícita cometida pelo denunciado seria passível de contenção mais razoável e proporcional com a só intervenção do Direito Administrativo, quem sabe com mera apreensão dos produtos contrafeitos e imposição de sanção pecuniária. E isto para não entrar nas raízes que fazem com que tais práticas existam na sociedade e tenham, de alguma forma, de serem punidas.

Finalmente, não há como conceber a imposição do cárcere a uma conduta que encontra tolerância na quase totalidade da sociedade.

A nosso ver, a referida absolvição foi assaz correta, a partir de uma leitura constitucional do Direito Penal. De fato, é notório que a Constituição Federal de 1988 é manifestamente garantista, sendo que um dos mais importantes princípios penais é o que diz que o direito penal deve ser a ultima ratio a ser usada contra os cidadãos, devendo ser usado somente quando os demais ramos do ordenamento jurídico se mostrarem ineficazes.

Por outro lado, há que enfatizar que somente as condutas tidas como inaceitáveis pela sociedade é que podem ser tipificadas como delituosas, isto é, rotuladas como "criminosas" e, assim, passíveis de punição corporal.

Ocorre que, a venda de produtos "piratas" (CDs e DVDs) em nosso país é um fato amplamente aceito por nossa sociedade como "normal", aceitável, natural. Ou seja, tal conduta não pode continuar a ser rotulada como criminosa, tendo em vista que o corpo social não a considera como tal. Nesse ponto, o penalista Fernando Capez (2012, p.35) leciona que:

(...) Adequação Social: todo comportamento que, a despeito de ser considerado criminoso pela lei, não afrontar o sentimento social de justiça (aquilo que a sociedade tem por justo) não pode ser considerado criminoso.
Para essa teoria, o Direito Penal somente tipifica condutas que tenham relevância social. O tipo penal pressupõe uma atividade seletiva de comportamento, escolhendo somente aqueles que sejam contrários e nocivos ao interesse público, para serem erigidos à categoria de infrações penais; por conseguinte, as condutas aceitas socialmente e consideradas normais não podem sofrer este tipo de valoração negativa, sob pena de a lei incriminadora padecer do vício de inconstitucionalidade. (Curso de Direito Penal, volume 1, Parte Geral. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

Assim, considerando que tanto a compra como a venda de CDs e DVDs "piratas" no Brasil é um fato considerado normal pela sociedade, não há que se falar em crime, em homenagem ao princípio da adequação social.

Nem me venha dizer que o costume não pode revogar a lei - argumento bastante usado pelos defensores da criminalização da referida conduta -, pois o que dizer da conduta dos pais que furam as orelhas dos bebês de sexo feminino para futuramente colocar brincos? Como se sabe, a ofensa a integridade física (inclusive a de furar a orelha) de qualquer pessoa consubstancia o crime de lesão corporal (art.129 do Código Penal: Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem), passível de pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano.

Não há dúvida de que a não criminalização da conduta dos pais se dá justamente porque tal conduta é considerada normal, justa, aceitável por nossa sociedade, razão pela qual a ofensa à integridade física (furo na orelha) de um bebê recém-nascido não é rotulada de criminosa, não obstante sua subsunção ao citado art.129 do Código Penal (Lesão corporal). Ademais, não esqueçamos que ainda há uma agravante a ser reconhecida no referido caso, isto é, a agravante de quando a vítima do delito é criança, a teor do art.61, II, "h", ocasião em que na segunda fase da aplicação da pena deveria haver um aumento de 1/6 (um sexto) sobre a pena-base.

Contudo, mesmo diante do referido cenário, isto é, da existência do delito de lesão corporal (art.129 do CP) e de uma agravante (art.61, II, "h", do CP), "até as pedras da rua sabem" que lesionar a orelha dos bebês de sexo feminino para futuramente serem colocados brincos não é uma conduta rotulada pela sociedade como criminosa.

Destarte, vê-se claramente que a venda de CDs e DVDs "pirateados" no Brasil não deve continuar a sofrer os rigores do Direito Penal em reconhecimento ao princípio da adequação social. Desta forma, parabéns ao magistrado do Estado de Goiás pela leitura constitucional aplicada ao caso.

Infelizmente, cabe registrar, que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (entendimento firmado a partir do julgamento do REsp 1.193.196-MG, DJe 04.12.2012) e do Supremo Tribunal Federal é no sentido da existência sim do crime de violação aos direitos autorais (art.184, §2º do CP), sendo que um dos frágeis argumentos é o de que o costume não pode revogar a lei, argumento este já rebatido linhas acima.

Desta forma, assaz correta se mostra a atipicidade da conduta dos vendedores de CDs e DVDs "piratas", cabendo-nos torcer para que os referidos Tribunais Superiores mudem seus entendimentos sobre a matéria, em homenagem ao princípio da adequação social.

Infelizmente, hoje, dia 29/10/2013 (terça-feira), o STJ expediu a Súmula nº 502* (2ºlink abaixo), afirmando a criminalização da venda de produtos piratas (CD's e DVD's), in verbis: "Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art.184, §2º, do CP, a conduta de expor à venda CD's e DVD's piratas".