terça-feira, 15 de março de 2011

A inconstitucionalidade da Lei nº10.628/2002

Antes de analisar o teor da Lei nº10.628/02, mister se faz a análise da súmula n°394 do Pretório Excelso, cancelada no ano de 1999.
A supracitada súmula tem o seguinte conteúdo: “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.
Diante disso, o entendimento esposado pela súmula nº394 era no sentido de que a competência por prerrogativa de função prevaleceria até mesmo após o término do mandato eletivo, isto é, mesmo após o término do mandato o antigo titular do cargo faria jus à prerrogativa de função, fazendo com que os processos fossem julgados ainda pelos tribunais superiores.
Insta registrar, que tal súmula foi criada durante a égide da Constituição de 1946, no dia 03 de abril de 1964, tendo sido cancelada no dia 25 de agosto de 1999, através da decisão unânime proferida no inquérito nº687-SP, sendo o relator o Ministro Sidney Sanches. A respeito, confira-se alguns excertos de sua decisão:
“É, pois, em razão do interesse público do bom exercício do cargo, e não do interesse pessoal do ocupante, que deve subsistir, que não pode deixar de subsistir a jurisdição especial, como prerrogativa da função mesmo depois de cessado o exercício”. (RTJ 22 págs.50 e 51). (...) Parece-me que é chegada a hora de uma revisão do tema, ao menos para que se firme a orientação da Corte, daqui para frente, ou seja, sem sacrifício do que já decidiu com base na Súmula 394, seja ao tempo da Constituição atual de 1988. A tese consubstanciada na Súmula 394 não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art.102, I, “b”, estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”, nos crimes comuns.
Continua a norma constitucional não contemplando, ao menos expressamente, os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art.102, I, “b” e “c”). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em contemplar, com a prerrogativa de foro perante esta Corte, as autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato.
(...) Além disso, quando a Súmula foi aprovada, eram raros os casos de exercício de prerrogativa de foro perante esta Corte. Mas os tempos são outros. Já não são tão raras as hipóteses de Inquéritos, Queixas ou Denúncias contra ex-Parlamentares, ex-Ministros de Estado e até ex-Presidente da República.
(...) Não se trata, é verdade, de uma cogitação estritamente jurídica, mas de conteúdo político, relevante, porque concernente à própria subsistência da Corte, em seu papel de guarda maior da Constituição Federal e de cúpula do Poder Judiciário Nacional. Objetar-se-á, ainda, que os processos envolvendo ex-titulares de cargos ou mandatos, com prerrogativa de foro perante esta Corte, não são, assim, tão numerosos, de sorte que possam agravar a sobrecarga já existente sem eles. Mas não se pode negar, por outro lado, que são eles trabalhosíssimos, exigindo dos Relatores que atuem como verdadeiros juízes de 1º grau, à busca de uma instrução que propicie as garantias que justificaram a súmula. Penso que, a esta altura, se deva chegar a uma solução oposta a ela, ao menos como um primeiro passo da Corte para se aliviar das competências não expressas na Constituição, mas que ela própria se atribuiu, ao interpretá-la ampliativamente e, às vezes, até, generosamente, sem paralelo expressivo no Direito Comparado.
Se não se chegar a esse entendimento, dia virá em que o Tribunal não terá condições de cuidar das competências explícitas, com o mínimo de eficiência, de eficácia e de celeridade, que se deve exigir das decisões de uma Suprema Corte. Os riscos para a nação, disso decorrentes, não podem ser subestimados e, a meu ver, hão de ser levados em grande conta, no presente julgamento”.

Feitos estes esclarecimentos, adentremos o mérito da Lei nº 10.628/02.
Cumpre destacar, que a supracitada lei modificou o art.84 do Código de Processo Penal, tendo-lhe acrescido dois parágrafos.
O §1º do art.84 estabelece que a “competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação penal judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”.
Infere-se da leitura do dispositivo legal transcrito, que o legislador ordinário acabou por “ressuscitar” a famigerada súmula nº 394 do STF. Neste sentido, veja o magistério de Néstor Távora:
Em 2002, com o advento da Lei nº 10.628/02, novo entendimento foi dado à questão, pois, devido à alteração do art.84 do CPP, em face do que dispõe o seu §1º, os atos ilícitos decorrentes de atos administrativos praticados pelo agente no exercício de suas funções, ficarão a cargo do competente Tribunal, até mesmo nas hipóteses em que o inquérito ou a ação se iniciam após encerramento da atividade funcional.
(...) ou seja, revitalizaram, através de lei ordinária, restringindo, contudo, o alcance às infrações praticadas em razão da função, os dizeres da extinta súmula nº394. Mas não foi só! O nosso legislador, não conformado, ainda inseriu um §2º ao art.84 do CPP, contemplando com foro privilegiado os agentes que incorressem em improbidade
administrativa” (p.249)


Portanto, nas precisas palavras do autor, o legislador ordinário, usurpando competência legislativa do Legislador Constituinte, procurou dar interpretação diferente da esposada pelo STF no julgamento da Súmula 394, tendo ampliado a competência dos Tribunais superiores através de lei ordinária, desembocando diretamente em inconstitucionalidade material, que nas precisas palavras do mestre Dirley da Cunha Junior

“A inconstitucionalidade material refere-se ao conteúdo do ato normativo. É materialmente inconstitucional todo ato normativo que não se ajusta ao conteúdo dos princípios e regras da Constituição. Todas as normas da Constituição, por serem imperativas, servem de paradigma imaterial para o controle da constitucionalidade dos atos normativos, sejam elas expressas ou implícitas, desde que determinadas” (p.331).

Seguindo a mesma linha, o renomado jurista, Luiz Flávio Gomes, apregoa que “a competência expressa determinada pela Constituição Federal não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que o poder constituinte originário assim o pretendia”.

Já o §2º da mesma lei, afirma que a ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no §1º.
Da mesma forma, o §2º sofre da mesma moléstia do §1º, isto é, de inconstitucionalidade material, porquanto regulara matéria que somente poderia ser realizada por via constitucional. Tanto é que tais dispositivos foram objeto de duas ações diretas de inconstitucionalidade. E outro não foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADINs de números 2.797-2 e 2.860-0. Neste sentido, confira a preleção de Néstor Távora,

“ [...] atualmente, após a apreciação das ADIN’s, não há mais de se falar em manutenção do foro privilegiado uma vez encerrado o cargo ou o mandato, nem muito menos em prerrogativa de função para as ações de improbidade administrativa. Estas últimas, pouco importa se a autoridade ou não exercendo as funções, serão ajuizadas perante o juízo de primeiro grau” (p.249)

Portanto, após o acolhimento de inconstitucionalidade das ADIN’s números 2.797-2 e 2.860-0 pelo Pretório Excelso, os §§1º e 2º do art. 84 do CPP foram extirpados do nosso ordenamento jurídico e lançados ao “mármore do inferno”, de onde, aliás, nunca deveriam ter saído, conforme o entendimento do STF que suplantou a vetusta Súmula nº 394.

Referências
TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª Ed. Salvador, Editora Juspodivm, 2010;
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 2°Ed. Salvador, Editora Juspodivm, 2008;
GOMES, Luiz Flávio. Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.157.

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