domingo, 2 de maio de 2021

HÁ AGRAVAMENTO DE PENA NOS CRIMES PRATICADOS DURANTE O PERÍODO DE PANDEMIA DA COVID-19?

 

Inicialmente, cabe explicar que agravante é uma circunstância prevista em lei que obrigatoriamente aumentará a pena-base do sentenciado, em regra até 1/6 (um sexto), conforme entendimento do STF e STJ.

Para uma análise detalhada do processo de dosimetria da pena, com fundamentação na doutrina especializada e jurisprudência do STF e STJ, conferir nosso livro[1]APLICAÇÃO DA PENA: doutrina e jurisprudência (2020, 258p.)”.

Em outras palavras, técnico-juridicamente falando, há a incidência da agravante do inciso J do art.61 do CP nos crimes praticados durante o período de Pandemia da COVID-19?

Como se sabe, o Código Penal prevê a seguinte agravante, in verbis:

Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

[...]

j) em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido; (negritei)

 

Sendo assim, não há dúvida que incide a presente agravante quando o agente pratica o crime durante estado de calamidade pública, porém, faz necessário analisar, ainda, se incide a presente agravante (inciso J do art.61 do CP) nas infrações penais praticadas desde 20.03.2020, data em que o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº06/2020, estabeleceu o estado de calamidade pública no País em decorrência da Pandemia de Covid-19.

A nosso ver, a agravante da prática de crimes durante a calamidade pública só incidirá caso o agente tenha se valido de facilidades decorrentes da Pandemia de Covid-19, não bastando a sua prática durante o período da Pandemia de Covid-19, sob pena de responsabilidade penal objetiva e violação ao princípio da individualização da pena (inciso XLVI do art.5º, Constituição Federal de 1988), ante a indevida inclusão de agravante não cabível no caso concreto.

Nesse sentido, o saudoso mestre, Roberto Lyra[2] (1958, p.312) ensina que:

[...] O agente não cria, como na letra "d", mas aproveita os efeitos da calamidade pública (além dos exemplos legais: seca, epidemia, guerra, extrema e geral carestia da vida, invasão armada, insurreição, certas greves etc.) que, por natureza, atinge a coletividade, ou de calamidade particular (acidente, falência, infortúnios domésticos e pessoais em geral etc.)".

 

No mesmo sentido: PRADO, Luiz Régis[3]. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, art.1º a 120. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p.502.

Especificamente quanto à agravante em tela em crimes praticados durante a Pandemia da Covid-19, Gustavo Dias Cintra Mac Cracken [4] (online), leciona que:

Considerando-se tudo quanto exposto, conclui-se que a circunstância agravante em questão não se justifica na maior parte dos delitos que compõem aquilo que se denomina "criminalidade de rua". E isso porque inexiste, em regra, qualquer nexo entre a prática, por exemplo, do delito de tráfico de drogas, de roubo ou de furto com as fragilidades concretamente ensejadas pela pandemia. Afinal, se não houve arrefecimento da vigilância policial não é possível vislumbrar, ao menos a priori, qualquer fragilidade na prevenção e repressão desta expressão da criminalidade.

 

Com absoluta razão a posição de Gustavo Dias Cintra Mac Cracken, tendo em vista que se faz necessário que haja uma relação de nexo de causalidade entre a infração penal praticada e a agravante em tela em crimes praticados durante a Pandemia da Covid-19, sob pena de responsabilidade penal objetiva, a qual não é admitida por nosso ordenamento jurídico.

Neste sentido, há jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[5]:

Primeiramente, faz-se necessário afastar a aplicação da agravante do artigo 61, inciso II, alínea “j”, do Código Penal, pois não restou devidamente comprovado nos autos que o réu se aproveitou das circunstâncias de fragilidade, vulnerabilidade ou incapacidade geradas pelo estado de calamidade pública decretado em virtude da pandemia do COVID-19.

Assim, não havendo nexo causal entre a situação de pandemia e a conduta do agente, de rigor o afastamento da agravante em questão, mantendo-se inalterada a reprimenda. (TJSP, Apelação Criminal nº1512067-20.2020.8.26.0228, Rel. ANDRADE SAMPAIO, 1ª Câmara de Direito Criminal, j.12.02.2021).

 

Em sentido inverso[6], a 2ª Câmara de Direito Criminal do TJSP, no julgamento da Apelação Criminal nº1512578-18.2020.8.26.0228, Rel. COSTABILE E SOLIMENE, considerou válida a incidência da agravante em análise aos crimes praticados durante a Pandemia da Covid-19 mesmo sem que exista nexo de causalidade.

Outrossim, não se pode perder de vista que o Direito Penal, num Estado Democrático de Direito, como é o Brasil, deve buscar conter e reduzir o poder punitivo estatal, tal como proposto por Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista (2006, p.40)[7], razão pela qual não se deve aceitar que haja a incidência da agravante em tela em crimes praticados durante a Pandemia da Covid-19 sem que haja nexo de causalidade entre a infração penal praticada e a Pandemia.

Diante o exposto, considerando principalmente o respeito ao princípio da individualização da pena (inciso XLVI do art.5º, CF/88) e que a função do Direito Penal, num Estado Democrático de Direito, é a busca da contenção e redução do poder punitivo estatal, bem como a necessidade de se evitar a responsabilidade penal objetiva, não se deve admitir que haja a incidência da agravante (inciso J do art.61 do CP) em crimes praticados durante a Pandemia da Covid-19 sem que haja nexo de causalidade entre a infração penal praticada e a Pandemia.

 

 

NOTAS

[1] GOMES, Adão Mendes. Aplicação da Pena: doutrina e jurisprudência. 1. ed. Taboão da Serra, SP: Vicenza Edições Acadêmicas, 2020. *Link para comprar o livro: https://livrariavicenza.com.br/produto/aplicacao-da-pena-comentarios-e-jurisprudencia/

[2] LYRA, Roberto; Comentários ao Código Penal, Vol. II: arts. 28 a 74. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense,1958, p.312.

[3] PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, art.1º a 120. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p.502.

[4] Cracken, Gustavo Dias Cintra Mac. A Covid-19 enquanto circunstância agravante ou atenuante da pena. CONJUR. Publicado em 28 de outubro de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-28/mac-cracken-covid-19-agravante-ou-atenuante-pena . Acesso em: 02.05.2021.

[5] GANEM, Pedro. Agravante por crime na pandemia deve ser afastada se não houver nexo causal. Canal Ciências Criminais. Publicado em 23/02/2021. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/agravante-por-crime-na-pandemia-deve-ser-afastada-sem-nexo-causal/ . Acesso em: 02.05.2021.

[6] GANEM, Pedro. TJ-SP: é válida agravante de calamidade pública em crime praticado na pandemia. Canal Ciências Criminais. Publicado em 13/03/2021. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/e-valida-agravante-de-calamidade-publica-em-crime-praticado-na-pandemia/ . Acesso em: 02.05.2021.

[7] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário