terça-feira, 11 de outubro de 2016

STJ "erra" ao determinar que acusados da morte de cinegrafista sejam julgados pelo Tribunal do Júri



No dia 27 de setembro de 2016, ao julgar o Recurso Especial nº 1556874/RJ, referente ao caso da morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago de Andrade, o Superior Tribunal de Justiça[1] acolheu a tese ministerial e determinou que os acusados Fábio Raposo Barbosa e Caio Silva de Souza fossem julgados pelo Tribunal do Júri.

Ocorre que, da análise detida do referido RESP, bem como da análise do Recurso em Sentido Estrito nº 0045813-57.2014.8.19.0001, julgado pela 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, tem-se que o entendimento firmado pelo Tribunal da Cidadania não se sustenta.

No julgamento do citado RESP, o STJ pontuou que há pelo menos mínimos indícios de dolo eventual, mormente porque os “os recorridos acenderam um rojão de vara em meio a um grande número de pessoas, em local no qual ocorria uma manifestação popular, o qual, por sua vez, atingiu a vítima levando-a a óbito” (fls.6 do acórdão), ou seja, considerou que a utilização por si só de um rojão é fato indicativo da dolosidade, ante a suposta potencialidade lesiva do objeto.

Colhe-se do acórdão (fls.6), in verbis:


Ora, a potencialidade lesiva do objeto utilizado pelos recorridos é atestada por laudo técnico acostado aos autos, cujas conclusões foram transcritas na denúncia, verbis :
Pelas Normas de Segurança este material de natureza e característica Explosiva e Incendiária, não pode ser armazenado em residências ou próximo destas, pois são passivos de causar Explosão e Incêndios inesperados, pondo em risco a vida, a integridade física de pessoas e o patrimônio destas, devendo ficar a mais de 500 (quinhentos) metros de conjuntos habitacionais, comércios e outros locais de risco. (fl. 5.)


Ocorre que, analisando o referido fundamento invocado pelo STJ, verifica-se que ele se funda na potencialidade lesiva do artefato somente pelo fato de ser um produto que não ser armazenado próximo de residências, ante a possibilidade de explosão. Só isso.

Contudo, como bem analisado pelo TJRJ[2], o rojão é um artefato lícito, livremente comercializado, com exceção por crianças e adolescentes. Confira:

A latere, releva salientar que Rojão, que não é arma própria, mas licitamente comercializado, com uma única proibição, qual seja, a venda e utilização por crianças e adolescentes, é um artefato utilizado em muitas festividades, inclusive, v.g. na Batalha de Espadas São João de Cruz Das Almas, na Bahia, sem qualquer implicação ou consequência no âmbito penal.
Ou será que deveriam ser processados por tentativa de homicídio com dolo eventual todos os participantes de tal festividade?


Todavia, parece que o STJ “esqueceu-se” dos basilares ensinamentos sobre dolo eventual.

Antes de mais nada, vejamos trecho da denúncia, extraído do aresto do TJRJ[3], in verbis:


[...] onde imputa aos acusados FÁBIO RAPOSO BARBOSA e CAIO SILVA DE SOUZA, a prática dos seguintes fatos: No dia 06 de fevereiro de 2014, por volta das 18h, na Praça Duque de Caxias, Centro, nesta cidade, local próximo de onde ocorria uma manifestação popular que visava contestar o aumento das tarifas das passagens dos coletivos, os denunciados, Fábio e Caio, agindo em comunhão de ações e desígnios, colocaram um artefato explosivo conhecido como rojão de vara no chão, junto a um canteiro e em meio a grande número de pessoas, e o acenderam, assumindo assim o risco da ocorrência do resultado morte, vindo a atingir a vítima Santiago Ilídio de Andrade, cinegrafista, causando-lhe as lesões descritas no Laudo de exame de corpo delito de necropsia juntado às fls. 148/149 - fratura do crânio com hemorragia intracraniana e laceração encefálica-, que foram à causa eficiente de sua morte, no dia 10 de fevereiro seguinte.


Isto porque, de fato, não há qualquer menção na exordial acusatória à figura do dolo eventual, pois não restou demonstrado que os autores sequer chegaram ao primeiro momento dos requisitos do dolo eventual.

Assim, relembremos os dois momentos do dolo no crime de homicídio. Segundo DAMÁSIO DE JESUS[4], in verbis:

É necessário que o agente tenha consciência do comportamento positivo ou negativo que está realizando e do resultado típico. Em segundo lugar, é preciso que sua mente perceba que da conduta pode derivar a morte do ofendido, que há ligação de causa e efeito entre eles. Por último, o dolo requer vontade de praticar o comportamento e causar a morte da vítima.
Em face desses requisitos, vê-se que o dolo de homicídio possui dois momentos:
a)   momento intelectual – consciência da conduta e do resultado morte e consciência da relação causal objetiva;
b)   momento volitivo – vontade que impulsiona a conduta positiva ou negativa de matar alguém.


De fato, considerando a adequação típica constante da peça acusatória, realmente não se vê qualquer vestígio de conduta dolosa, ainda que eventual, pois não se vê qualquer relação entre acender um rojão e desta conduta poder vir um resultado morte, tanto é, que no acórdão do TJRJ o relator de forma brilhante pontuou que em Cruz das Almas/BA, caso fosse assim, todos os participantes deveriam ser denunciados por tentativas de homicídio, o que não se vê.

Ante o brilhantismo do acórdão do TJRJ, merece a transcrição do voto do Desembargador GILMAR AUGUSTO TEIXEIRA[5]:


Não se vislumbra, no caso concreto, a existência do primeiro desses elementos, qual seja, o intelectivo, posto que não há indícios de que aquelas ações (entrega do artefato de um para o outro e o ato de acender e colocar ao solo para disparo) estejam impregnadas de qualquer consciência do resultado morte e sua relação de causalidade objetiva.
O dolo deve abranger os elementos da figura típica e para que se possa dizer que o sujeito agiu dolosamente, é necessário que seu elemento subjetivo tenha-se estendido às elementares e às circunstâncias do delito.


De fato, das referidas ações (entrega do artefato de um para o outro e o ato de acender e colocar ao solo para disparo) não é uma consequência normal a morte de alguém, tanto é assim que nas grandes manifestações nos centros urbanos brasileiros é corriqueiro o uso de tais artefatos, e nunca se viu falar em morte de alguém.

In casu, tem-se que a morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, infelizmente, foi decorrência de uma violação do dever de cuidado objetivo, por meio de ato imprudente, impensado, mas, frise-se, jamais de um suposto ato imbuído de dolo eventual, isto é, de que os agentes assumiram o risco de matar alguém ao acender um rojão.

Tanto é assim, que o acórdão do TJRJ[6] pontuou que o uso de tal artefato é comum em manifestações; que ele tem o momento certo para explodir, ou seja, não explode só porque bateu em algum obstáculo. Assim, confira outro trecho:


Nem se alegue que na dúvida entre a presença ou não do dolo eventual a questão deveria ser resolvida pelo Conselho de Sentença.
Estamos diante de uma decisão interlocutória mista de Pronúncia que não aponta indícios mínimos do dolo eventual do crime doloso contra a vida e, compulsando o caderno de provas, desde a produzida na distrital até a que foi judicializada, pode-se afirmar taxativamente que E para não deixar no vazio, é de bom alvitre trazer à colação pequenos trechos da prova, tal como judicializada:
A testemunha Luiz Alexandre de Oliveira Martins, PMERJ, que estava no local dos fatos afirmou que:
“atuou utilizando dois lançadores de gás lacrimogêneo e três granadas de efeito moral, para poder assustar as pessoas e elas se dispersarem (...) que os artefatos são utilizados para desestabilizar as forças policiais
O Dr. Maurício Silva, Delegado de Polícia, ao ser ouvido em juízo afirmou que:
“Quando tira a vara um buscapé fica sem direção”
Outro ponto importante colhido da prova é que o perito, questionado pelo juízo afirmou que:
“O artefato só explode no tempo dele, ou seja, mesmo que encontre algum obstáculo no caminho, ele não irá explodir. A deflagração na cabeça de Santiago foi por acaso, não foi porque bateu na cabeça dele.”
Assim, não se extraindo do panorama probatório sequer indícios do dolo eventual, outra alternativa não há, senão a desclassificação, com o deslocamento da competência do feito ao juízo criminal comum, por livre distribuição e sua posterior remessa ao Ministério Público para a formulação de sua opinio delicti.


Assim, como destacado pelo perito que foi ouvido na fase judicial, a explosão na cabeça do cinegrafista Santiago foi apenas por acaso, ou seja, explodiu porque era o momento do artefato, mero acaso, que, infelizmente, aconteceu.

Ademais, vê-se que um dos policiais que estavam no local do fato atestou que é comum a utilização do rojão para desestabilizar os policiais, ou seja, é fato corriqueiro, sendo imprevisível a morte de alguém em decorrência da conduta de acender e soltar o rojão, excepcionalmente, complementamos, na fatalidade que ceifou a vida do cinegrafista da TV Bandeirantes.

Em outras palavras, não há como consequência lógica da entrega do artefato de um para o outro e o ato de acender e colocar ao solo para disparo a ocorrência da morte de alguém, nem a dolo direto muito menos a título de dolo eventual, pois tal circunstância não é previsível.

Ora, situação que haveria dolo eventual seria o ato de ao invés dos agentes utilizarem-se de um rojão (que é um produto lícito, comercializável, e que é inerente ter um caminho tortuoso, sem direção, e que comumente utilizado nas manifestações), seria utilizar uma arma de fogo e atirar a esmo, o que não é a hipótese sub judice.

Assim, merece relevo mais uma vez os ensinamentos de DAMÁSIO DE JESUS[7]:

Ocorre o dolo eventual quando o sujeito assume o risco  de produzir a morte, isto é, admite e aceita o risco de produzi-la. Ele não quer a morte, pois se assim fosse haveria dolo direto. Prevê a morte da vítima e age. A vontade não se dirige ao resultado (o sujeito não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Prevê que é possível causar o resultado e, não obstante, pratica o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza. Ex.: o agente pretende atirar na vítima, que se encontra conversando com outra pessoa. Percebe que, atirando na vítima, pode atingir outra pessoa. Apesar dessa possibilidade, prevendo que pode matar o terceiro, é-lhe indiferente que este último resultado se produza. Tolera a morte do terceiro. Para ele, tanto faz que o terceiro seja atingido ou não, embora não queira o resultado. Atirando na vítima e matando também o terceiro, responde por dois crimes de homicídio: o primeiro, a título de dolo direto; o segundo, a título de dolo eventual.


Desta forma, tem-se como equivocada a decisão do STJ em considerar como indicio de dolo eventual o fato dos acusados terem acendido e soltado um rojão durante a referida manifestação, pois eles sequer chegaram ao primeiro momento do dolo do homicídio, qual seja, o momento intelectual – consciência da conduta e do resultado morte e consciência da relação causal objetiva, muito menos era previsível que a sua atuação decorresse a morte de alguém.

Assim, considerando a garantia constitucional do art.5º, XXXVIII, alínea “d”, que dispõe que o Tribunal do Júri tem competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, em cotejo com art.74, §1º do Código de Processo Penal, que ao regulamentar o referido dispositivo constitucional prevê que “Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados”, bem como o §2º do referido art. Do CPP, que dispõe que “Se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclassificação para infração da competência de outro, a este será remetido o processo, salvo se mais graduada for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada.”, tem-se como acertada a desclassificação feita pelo TJRJ e equivocada a decisão do STJ que reconheceu ao menos indícios de dolo eventual.

Isto porque, o art.419 do CPP dispõe que “Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no § 1o do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja”.

Em outras palavras, ao contrário do quanto defendido pelo STJ, se restar claro que da narrativa da peça acusatória, bem como das provas produzidas, que não há sequer indícios de dolo, seja direto ou eventual, a legislação processual penal brasileira prevê a possibilidade do juiz da vara sumariante de desclassificar o crime supostamente doloso contra a vida para outro que não o seja, ou seja, que a referida conduta delitiva seja analisada em outro órgão jurisdicional, posto que o Tribunal do Júri julga apenas crimes dolosos contra a vida.

Ademais, e não menos importante, o STJ concluiu o julgamento do RESP alegando que não havendo a total ausência de indícios mínimos de dolo eventual por parte dos réus, eles deveriam serem julgados pelo Tribunal do Júri em respeito ao princípio do in dubio pro societate.

Com efeito, como não poderia deixar de ser, quando não se tem um fundamento suficiente, o STJ acabou por lançar mão de um argumento de autoridade, para fundamentar sua decisão, que, tecnicamente, por si só, não se sustenta.

Nesta seara, concordamos com as lições de AURY LOPES JR[8]., que devido ao brilhantismo, pedimos a devida venia para transcrever:

Noutra dimensão, bastante problemático é o famigerado in dubio pro societate. Segundo a doutrina tradicional, neste momento decisório deve o juiz guiar-se pelo “interesse da sociedade” em ver o réu submetido ao Tribunal do Júri, de modo que, havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal, deve ele ser pronunciado. [...] A jurisprudência brasileira está eivada de exemplos de aplicação do brocardo, não raras vezes chegando até a censurar aqueles (hereges) que ousam divergir do “pacífico entendimento”. Pois bem, discordamos desse pacífico entendimento. Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate? Nenhuma. Não existe. Por maior que seja o esforço discursivo em torno da “soberania do júri”, tal princípio não consegue dar conta dessa missão. Não há como aceitar tal expansão da “soberania” a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com carga probatória. Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário.


De fato, em face da clarividência das palavras, desnecessária se faz qualquer aprofundamento quanto ao ponto, merecendo destacar apenas que é preciso que os juristas, especialmente os juízes criminais, saiam da sua zona de conforto e comecem a divergir do “pacífico entendimento”, fugindo, portanto, da aplicação mecânica de um princípio que sequer é admitido por nossa Carta Política, que prega sobremaneira a presunção de inocência.

Por fim, e complementando o quanto exposto, tem-se que, tomando por base um Direito Penal garantidor dos direitos individuais e que coloca em primeiro lugar o cidadão, tem-se que ainda que a decisão do STJ reflete um direito penal conservador, o qual considera o direito penal como um ramo do direito que apenas prever os crimes e estipula as penas correspondentes, ou seja, que somente enxerga para a frente, não vê o que está ao seu lado.

Contudo, tem-se que a nossa Constituição, por ser garantista, não se adequa a um direito penal conservador, mas ao revés, a um direito que prega a dignidade humana.

Assim, mister se faz a necessidade da colação dos ensinamentos de RAÚL ZAFFARONI e NILO BATISTA[9], que conceituam ser o Direito Penal: “[...] o ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso do estado de constitucional de direito”.

Em verdade, a decisão tomada pelo Tribunal da Cidadania parece mais ser uma resposta aos reclames da sociedade, restando indiferente se juridicamente os réus fazem jus ou não à uma decisão de desclassificação de um crime de homicídio doloso para culposo, não obstante o arcabouço probatório e as circunstâncias do caso demonstrarem que sim.

Sendo assim, embora o STJ tenha julgado que há indícios, ainda que mínimos de dolo eventual, e que ao invés de desclassificar o delito para homicídio culposo, deve ser aplicado o brocardo in dubio pro societate, devendo os réus “arriscarem” serem condenados pelos jurados,  preferimos agir como dito por AURY LOPES JR., divergindo do “pacífico entendimento”.

Diante todo o exposto, tem-se que a decisão do STJ de restabelecer a sentença de pronúncia possui vícios técnico-jurídicos, pois acabou por “fazer vistas grossas” aos mais comezinhos ensinamentos que se aprendem nos primeiros anos de faculdade de Direito, bem como ainda está em descompasso com um direito penal de garantias.



REFERÊNCIAS


[1]http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/Not%C3%ADcias/Not%C3%ADcias/Acusados-por-morte-de-cinegrafista-v%C3%A3o-a-j%C3%BAri-popular

[2]  TJRJ, Recurso em Sentido Estrito nº 0045813-57.2014.8.19.0001, fls.30/31.

[3]  TJRJ, Recurso em Sentido Estrito nº 0045813-57.2014.8.19.0001, fls.59/60

[4]  JESUS, Damásio E. de. Direito penal, volume 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.35.

[5]  TJRJ, Recurso em Sentido Estrito nº 0045813-57.2014.8.19.0001, fls.68.

[6]  TJRJ, Recurso em Sentido Estrito nº 0045813-57.2014.8.19.0001, fls.79/81.

[7]  JESUS, Damásio E. de. Direito penal, volume 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.36.

[8] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.806.

[9]  ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p.40.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Análise da sentença condenatória do suposto serial killer de Goiás

                                                                   
TIAGO HENRIQUE GOMES DA ROCHA, o suposto serial killer de Goiás foi condenado nesta terça-feira (16.02.2016) a uma pena de 20 (vinte) anos de reclusão, pela morte da jovem Ana Karla Lemes da Silva, ocorrida em dezembro de 2013, na cidade de Goiânia/GO.

Ocorre que, da análise da sentença condenatória (link abaixo), verifica-se claramente alguns erros técnico-jurídicos, o que acabou por fazer a pena definitiva do referido condenado ter ficado bem maior do que lhe era devido em razão do princípio constitucional da individualização da pena (art.5º, inciso XLVI, da Constituição Federal de 1988), senão vejamos.

Do referido édito condenatório, observa-se que o condenado foi incurso no delito de homicídio qualificado, com 2 qualificadoras, quais sejam, a do inciso I (crime cometido por motivo torpe) e a do inciso IV (mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido), todos do §2º do art.121 do Código Penal brasileiro.
Insta destacar que ainda foram consideradas 4 (quatro) circunstâncias judiciais em seu desfavor no momento da fixação da pena-base, quais sejam, culpabilidade; conduta social; personalidade e circunstâncias do crime. 

Importa destacar ainda, que na ocasião da fixação da pena-base, o douto sentenciante destacou que ante a existência de 2 (duas) qualificadoras – somente pela existência de uma qualificadora a pena mínima passa a ser de 12 e a máxima de 30 anos de reclusão - uma seria usada para qualificar o homicídio e a outra seria valorada no como circunstância judicial.

O primeiro erro técnico-jurídico se refere à fundamentação dada à circunstância judicial dada à culpabilidade, onde percebe-se claramente que foi confundida a noção de reprovabilidade da conduta que merece ser reprimida (art.59, CP) com o conceito de culpabilidade que é elemento do fato típico (como se sabe, para a teoria tripartite, o crime é fato típico, ilícito e culpável). Confira trecho da sentença, in verbis:

Analiso a culpabilidade, aferindo uma conduta reprovável porque o réu, ao tempo do fato era plenamente imputável, possuía potencial condição de entender o caráter ilícito do fato e de ter conduta compatível com o ordenamento jurídico tendo transtorno antissocial de personalidade. (grifei)

Da análise do trecho acima, percebe-se claramente que a fundamentação para majorar a pena-base foi o da culpabilidade que é elemento do fato típico, razão pela qual não deveria ter sido considerada, sob pena de dupla valoração da mesma circunstância. Sobre o tema, ao analisar a circunstância judicial da culpabilidade, RICARDO SCHMITT ensina que:

Não se trata da culpabilidade que se mostra como pressuposto à aplicação da pena (não confunda). A culpabilidade é a reprovabilidade da conduta, que é tida como elemento do crime ou pressuposto de aplicação da pena, conforme a teoria adotada, de modo que, afastada a culpabilidade, a sentença será absolutória e não restará aplicada qualquer pena. (negritei)

Desta forma, tem-se que a circunstância judicial da culpabilidade como foi fundamentada não poderia ter sido utilizada como circunstância judicial desfavorável ao réu.

O segundo erro técnico-jurídico se deu ao valorar negativamente as circunstâncias judiciais da conduta social e a personalidade. Confira mais uma vez trecho do édito condenatório, in verbis:

que sua personalidade e conduta social são preocupantes vez que é dado a práticas criminosas e ainda, de acordo com o Laudo Médico Pericial de Insanidade Mental acostado às fls. 314/322 dos presentes autos, o mesmo possui transtorno de personalidade antissocial, vulgarmente conhecido como “psicopatia” como mencionado acima. (grifei)

Quanto à conduta social, o entendimento da doutrina mais balizada é a de que tal circunstância se refere somente ao sentimento que a comunidade tem sobre o réu, tal como, se é bem visto em sua comunidade, considerado amigo pelos vizinhos, se é um bom pai, se é querido no trabalho, etc.

A fundamentação usada na sentença condenatória nada tem a ver com conceito de conduta social aceita pacificamente pela doutrina e jurisprudência pátrias. Neste sentido, ao discorrer sobre a conduta social, GUILHERME DE SOUZA NUCCI ensina que:

É o papel do réu na comunidade, inserido no contexto da família, do trabalho, da escola, da vizinhança, dentre outros, motivo pelo qual além de simplesmente considerar o fator conduta social preferimos incluir a expressão inserção social. Não somente a conduta antecedente do agente em seus vários setores de relacionamento, mas sobretudo o ambiente no qual está inserido são capazes de determinar a justa medida da reprovação que seu ato criminoso possa merecer. (negritei)

Como é de sabença trivial, desde a reforma penal de 1984, a questão de circunstâncias afetas à vida criminal do réu se referem à circunstância judicial dos antecedentes. Assim, tem-se que tal circunstância também não poderia ter sido utilizada contra o réu para recrudescer a sua sanção penal.

Por seu turno, a valoração negativa da personalidade também não se afigurou correta do ponto de vista técnico-jurídico, tendo em vista que sua valoração se apegou à circunstância do réu sofrer de transtorno de personalidade antissocial, mais conhecida como “psicopatia”, o que fez que a pena fosse majorada por conta do modo de ser do indivíduo, isto é, ser uma pessoa portadora de um transtorno (patologia), que, frise-se, não foi escolha da pessoa ser assim.

Destaque-se, que sancionar alguém por sua simples condição de ser de um tipo, é clara violação ao princípio da secularização, que proíbe sancionar alguém por seu modo de ser ou viver, no caso, por seu uma pessoa portadora de uma patologia, isto é, transtorno de personalidade antissocial. Como é cediço, o direito penal moderno se funda na culpabilidade pelo fato praticado, não mais na culpabilidade de autor, ou seja, relativa a circunstâncias pessoais. Sobre o principio da secularização, SALO DE CARVALHO observa que:

O termo secularização é utilizado para definir os processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu uma cisão entre a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas (laicização), mais especificamente entre a moral do clero e o modo do produção da(s) ciência(s)”.

Sendo assim, pelo fato da circunstância do transtorno de personalidade ser uma circunstância de autor, não deveria ter sido valorada negativamente contra o réu, por clara violação ao princípio da secularização.

A última falha técnica-jurídica foi utilizar para majorar a pena-base as circunstâncias do crime, o que acabou por caracterizar odiável bis in idem (dupla valoração), in verbis:

que as circunstâncias do crime lhe são prejudiciais, uma vez que atingiu a vítima em via pública, no período noturno, de inopino, com um único disparo certeiro enquanto ela caminhava pela calçada impossibilitada de defender-se. (negritei)

Como se observa, verifica-se que foi valorada negativamente como circunstância do crime o fato dele ter sido praticado durante a noite, dado de inopino, o que restou por impossibilitar a vítima de defender-se do ataque.

Ora, não poderia ter sido invocada a circunstância da impossibilidade de defesa para majorar a pena-base, tendo em vista que tal circunstância já foi usada como qualificadora do delito, que, como já explanado, faz com que o homicídio deixe de ser considerado simples (com pena mínima de 6 anos e máxima de 20 anos) e passe a ser qualificado, com pena mínima de 12 anos e máxima de 30 anos de reclusão. Sobre a proibição da dupla valoração, PAULO QUEIROZ ensina que:
Também em razão do princípio da proporcionalidade (e legalidade), é vedado o bis in idem, isto é, dupla valoração (direta ou indiretamente) do mesmo fato jurídico, seja recriminalizando-o, seja repenalizando-o, seja agravando a pena múltiplas vezes. Semelhante princípio proíbe, portanto, a multiplicidade de sanções para o mesmo sujeito, por um mesmo fato e por sanções que tenham um mesmo fundamento, isto é, que tutelem um mesmo bem jurídico.

Todavia, ao valorar a circunstância qualificadora da impossibilidade de defesa também como circunstância judicial, a douta sentença incorreu em odiável bis in idem (dupla valoração), razão pela qual também não deveria ter sido considerada na fixação da pena.

Desta forma, verifica-se que as circunstâncias judiciais utilizadas para fins de majoração da pena de TIAGO HENRIQUE não deveriam ter feito parte da fundamentação de recrudescimento da referida sanção penal pelos motivos expostos.

Quanto a valoração a ser dada a cada circunstância judicial, considerando que o homicídio qualificado a que TIAGO HENRIQUE foi condenado possui pena abstrata de mínimo 12 anos e máxima de 30 anos, o intervalo dele é de 18 anos (subtração de 30 anos (pena máxima de 12 anos (pena mínima) e, dividindo tal intervalo de tempo (18 anos) pelo número das 8 circunstância judiciais constantes do art.59 do CP, tem-se que cada uma dessas circunstâncias possuiria a valoração máxima aproximada de 2 anos e 2 meses*.

Assim, considerando apenas a legitimidade da utilização da segunda qualificadora como circunstância judicial, frise-se, embora o Superior Tribunal de Justiça entenda que ela deva ser valorada como agravante (Conferir o HC 220624/RS, STJ, Rel. Gurgel de Faria, 5ª Turma, DJe 26.11.2015), caso a qualificadora conste no rol do art.61 do CP, tem-se que a pena definitiva de TIAGO HENRIQUE deveria ser aproximadamente 14 (quatorze anos) de reclusão.

Diante o exposto, verifica-se que a pena que lhe fora fixada não se encontra em consonância com o princípio constitucional da individualização da pena, razão pela qual se espera, acaso interposto o recurso cabível, que os órgãos jurisdicionais de revisão reduzam a sanção imposta.


REFERÊNCIAS


SHIMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória. 7ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.115/116.

NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.200/201.

CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p.5.

QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal: parte geral vol. 1. 8ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.81.

*Defendendo este método na valoração das circunstâncias judiciais, confira: SHIMITT, Ricardo Augusto. Sentença Penal Condenatória. 7ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2012, p.166/167.