Um
tema de extrema importância que não tem tido a devida atenção dos operadores do
direito penal brasileiro se refere à interrupção da prescrição referente ao
início de cumprimento da pena, consoante regra constante da primeira parte do
art.117 do Código Penal (CP).
Assim
dispõe o art.117 do CP, in verbis: Art. 117 - O curso da prescrição interrompe-se: [...] V - pelo início ou
continuação do cumprimento da pena.
Com efeito, quando se analisa de forma geral os
manuais e livros de direito penal que tratam do tema, eles se restringem a
afirmar que o início do cumprimento da pena é causa que interrompe a prescrição
penal.
Todavia, os referidos manuais e livros de direito
penal se esquecem de um conceito de extrema importância prática: “Afinal, o que
significa início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de
prescrição penal?”
De fato, basta pesquisar o tema em qualquer livro
de direito penal que trata da temática, que o leitor verificará que não há
qualquer conceito de início de cumprimento da pena para fins de interrupção do
prazo de prescrição penal, sendo que os referidos livros apenas informam que o
início de cumprimento da sanção penal importa interrupção do prazo prescricional.
Nesses termos, tem-se que os manuais e livros de direito
penal se omitem em relação a tema de extrema importância não só teórica, mas
prática mesmo.
Dessa forma, mister se faz buscar responder à
pergunta título deste artigo jurídico, como forma de se aperfeiçoar ainda mais
a ciência do direito penal e/ou direito penitenciário.
Calha destacar que o Código Penal brasileiro
apenas prevê que o início de cumprimento da pena é causa interruptiva da
prescrição, porém, não descreve nem informa o que deve se entender por início
de cumprimento da sanção penal, o que pode ocasionar graves prejuízos aos
direitos fundamentais da pessoa condenada.
Pois bem, considerando que nosso Código Penal não
esclarece o que deve ser entendido por início de cumprimento da pena para fins
de interrupção do prazo prescricional, é preciso buscar a resposta em outro
diploma legislativo.
Assim, considerando o princípio da especialidade,
há que se buscar a resposta à indagação título deste artigo na Lei nº7.210 (Lei
de Execução Penal), que trata das regras e procedimentos relativos à execução
da pena imposta aos condenados por infrações penais.
In casu,
cabe destacar que a Lei de Execução Penal (LEP) traz disposições
importantíssimas acerca do tema objeto deste artigo jurídico, especialmente o caput
do art.107 da LEP. Confira, in verbis:
Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena
privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a
expedição de guia de recolhimento para a execução.
Art. 106. A guia de recolhimento, extraída pelo
escrivão, que a rubricará em todas as folhas e a assinará com o Juiz, será
remetida à autoridade administrativa incumbida da execução e conterá:
I - o nome do condenado;
II - a sua qualificação civil e o
número do registro geral no órgão oficial de identificação;
III - o inteiro teor da denúncia e
da sentença condenatória, bem como certidão do trânsito em julgado;
IV - a informação sobre os
antecedentes e o grau de instrução;
V - a data da terminação da pena;
VI - outras peças do processo
reputadas indispensáveis ao adequado tratamento penitenciário.
Art. 107. Ninguém será recolhido, para cumprimento de pena
privativa de liberdade, sem a guia expedida pela autoridade judiciária.
§ 1° A autoridade administrativa
incumbida da execução passará recibo da guia de recolhimento para juntá-la aos
autos do processo, e dará ciência dos seus termos ao condenado.
§ 2º As guias de recolhimento serão
registradas em livro especial, segundo a ordem cronológica do recebimento, e
anexadas ao prontuário do condenado, aditando-se, no curso da execução, o
cálculo das remições e de outras retificações posteriores.
Da análise dos referidos dispositivos da LEP,
verifica-se que a guia de recolhimento é um documento expedido durante a
execução da pena que individualiza o condenado, tanto do ponto de vista sobre
informações pessoais, bem como sobre informações relacionadas à infração penal
que foi imposta àquele, tudo como o propósito de se concretizar o princípio da
individualização da pena (inciso XLVI do art.5º da Constituição Federal de
1988), bem como de se evitar erro judiciário que leve à prisão terceiro que não
foi condenado pela infração objeto do processo de execução penal.
Com efeito, embora o Código Penal brasileiro não
esclareça o que significa início de cumprimento da pena para fins
prescricionais, a Lei de Execução Penal responde à pergunta título deste artigo
jurídico, conforme se observa do caput do art.107 da LEP, tendo em vista que
este dispositivo legal estabelece de forma peremptória que ninguém será recolhido,
para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a guia expedida pela
autoridade judiciária.
Observe, atento leitor, que o art.107 da LEP
preceitua de forma gritante que nenhuma pessoa será recolhida (presa) para fins
de cumprimento de pena privativa de liberdade sem a prévia expedição da guia de
recolhimento.
Em outras palavras, enquanto não houver a
expedição da guia de recolhimento, aliado ao fato do condenado estar preso,
juridicamente não haverá o início de cumprimento da sanção penal imposta ao
condenado por infração penal.
De fato, a regra consubstanciada no art.107 da
LEP é instransponível e não deixa espaço para dúvidas: caso o condenado esteja
preso, se não houver a expedição prévia da guia de recolhimento, juridicamente
não haverá o início de cumprimento da pena para fins prescricionais previsto no
art.117, inciso V do CP.
É preciso deixar bem clara essa questão.
Combinando-se os aludidos dispositivos do CP e da
LEP, observa-se que só há início de cumprimento da sanção penal se preenchidos
2 (dois) requisitos cumulativos: 1) que o condenado esteja preso (ainda que se
trate de preso provisório, sendo que nesse caso haverá a guia de recolhimento
provisória); 2) que haja a expedição da guia de recolhimento, que será
definitiva (se houver o trânsito em julgado da sentença penal condenatória) ou
provisória (caso se trate de preso provisório).
O requisito do condenado se encontrar preso para
que haja a expedição da guia de recolhimento, como prevê a LEP, também consta
da Resolução nº113 do Conselho Nacional de Justiça, de 20 de abril de 2010, que
dispõe sobre o procedimento relativo à execução de pena privativa de liberdade
e de medida de segurança, conforme regra do §1º do art.2º.
No mesmo sentido de ser obrigatória a prisão do
condenado par a expedição da guia de recolhimento: CUNHA, Rogério Sanches. Execução
Penal para Concursos: LEP. coordenador Ricardo Didier. 6ª. ed. rev., atual,
e ampl. Salvador: Juspodivm, 2016, p.134/135.
Dito de outra forma, não há início de cumprimento
da pena para quaisquer fins: 1) caso o condenado seja preso, mas não haja a prévia
expedição da guia de recolhimento; 2) haja a expedição da guia de recolhimento,
mas o condenado está livre.
Ou seja, juridicamente só há início de
cumprimento da sanção penal para quaisquer fins se preenchidos 2 (dois)
requisitos cumulativos: 1) que o condenado esteja preso; 2) que haja a
expedição da guia de recolhimento antes do decurso do prazo prescricional.
Ademais, considerando o princípio da legalidade
penal e também a proibição de analogia em prejuízo do condenado, não há como se
considerar início de cumprimento da pena antes do preenchimento dos 2 referidos
requisitos cumulativos.
Nessa toada, o atento leitor percebe que a
indagação título deste artigo jurídico - “Afinal, o que significa início de
cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de prescrição penal?” –
envolve tema de extrema importância não só teórica, mas prática mesmo.
Basta pensar no caso de condenado por infração
penal qualquer que tenha fugido após ser intimado da sentença penal
condenatória (tendo transitado em julgado) e nunca iniciou o cumprimento da
pena, cabendo lembrar que a publicação da sentença de condenação é causa
interruptiva da prescrição penal (inciso IV do art.117 do CP).
Suponha ainda que essa infração penal prescreva
em 8 (oito) anos, nos termos do art.109 do CP, que estabelece que a prescrição
antes de transitar em julgado a sentença final prescreve em oito anos, se o
máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro.
Como
se sabe, o art. 110 do CP reza que a prescrição depois de transitar em julgado
a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos
fixados no artigo anterior, isto é, nos prazos fixados no art.109 do CP.
Voltando
ao exemplo, suponha que o condenado esteja na condição de fugitivo há 7 anos e
11 meses, faltando apenas 1 mês para ocorrer a prescrição, caso ele seja preso
antes do decurso do prazo de 1 mês, estará preenchido um dos dois requisitos
legais, faltando apenas a expedição da guia de recolhimento para que ele possa
iniciar regularmente o cumprimento da pena.
Pergunta-se:
no exemplo acima, estando o condenado preso, caso haja a expedição da guia de
recolhimento somente depois do decurso do prazo de 1 mês, poderá ser
considerado início de cumprimento da pena para fins prescricionais?
A
resposta só pode ser negativa, tendo em vista a regra solar do art.107 da LEP que preceitua de forma
gritante que nenhuma pessoa será recolhida (presa) para fins de cumprimento de
pena privativa de liberdade sem a prévia expedição da guia de recolhimento,
logo, forçoso é se reconhecer a ocorrência de prescrição, pois o binômio prisão
do condenado-expedição da guia de recolhimento não foi cumprido antes do
decurso do prazo prescricional.
Lembre-se que o Código de Processo Penal estabelece
no seu art. 61, que em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta
a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.
Não por outra razão, em nossa obra “Lei de
Execução Penal: comentários e jurisprudência” (2020, p.124-126), já tivemos
a oportunidade de defender de forma inédita que:
Da análise do art.107, não há dúvida de que não
poderá haver o início de cumprimento da pena privativa de liberdade sem que
antes seja expedida a guia de recolhimento, a qual é o título executivo da
sanção penal.
É importante destacar, que a regra do art.107 da
LEP tem importante reflexo no jus puniend
(direito de punir) do Estado, que nem sempre é percebido pelos operadores do
Direito, seja advogado, ministério público e magistrados.
Isto porque, conjugando-se o art.107 da LEP com o
art.117, inciso V, Código Penal, tem-se que enquanto não for expedida a guia de
recolhimento, mesmo que o sentenciado seja preso preventivamente ou por mandado
decorrente da sentença condenatória transitada em julgado, juridicamente não
haverá início de cumprimento da pena e, assim, não será interrompida a
prescrição, o que terminará por desaguar no reconhecimento da prescrição
executória.
Por exemplo, um sentenciado que tenha sido
condenado e fugido, sem jamais ter iniciado o cumprimento da pena, caso o mesmo
seja preso preventivamente faltando poucos dias para o transcurso da prescrição
executória, caso a justiça criminal não expeça a guia de recolhimento antes do
termo final do prazo prescricional, a pretensão estatal estará fulminada pela
prescrição executória.
Dito de outra forma, se o juiz saber da prisão do
sentenciado, caso ele expeça a guia de recolhimento antes do término do prazo
da prescrição executória, o prazo prescricional será interrompido, zerando-se.
Todavia, se a expedição da guia for feita apenas
após o transcurso do referido prazo de prescrição, estará extinta a
punibilidade do condenado, pois ninguém será recolhido, para cumprimento de
pena privativa de liberdade, sem a guia expedida pela autoridade judiciária
(art.107 da LEP), isto porque, o prazo prescricional só é interrompido quando
há o início de cumprimento da pena (art.117, V, CP), frise-se, o qual não se
inicia sem a prévia expedição da guia de recolhimento (art.107 da LEP) ou no
caso do preso provisório, pela guia provisória.
Por fim, cabe destacar, que o art.117 do CP não
elenca a prisão provisória (preventiva ou temporária) ou por mandado decorrente
da sentença condenatória transitada em julgado como causa interruptiva do prazo
prescricional, sendo que por estar em jogo a liberdade do cidadão e, ainda,
considerando o princípio da legalidade penal, não se pode fazer interpretação
extensiva para considerar a prisão provisória (preventiva ou temporária) ou por
mandado decorrente da sentença condenatória transitada em julgado como início
de cumprimento da pena, ante a regra expressa e clara do art.107 da LEP, que
reza que ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de
liberdade, sem a prévia guia de recolhimento expedida pela autoridade
judiciária.
[...] Entretanto, não se desconhece a existência de
alguns precedentes do STJ no sentido de que mesmo a prisão por um só dia já é
suficiente para interromper a prescrição, mesmo sem a expedição da guia de
recolhimento, conforme RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS (RHC) nº4.275/RJ, DJU
05.09.1996, Rel. Min. Edson Vidigal, bem como no RHC nº 16.787 – RS, Rel. Min.
JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJ 21.02.2005.
Todavia, da análise dos referidos precedentes do
STJ, verifica-se que em nenhum deles é feito o cotejo do art.117, inciso V,
Código Penal com o art.107 da LEP, ou seja, não são rebatidos os nossos
argumentos acima destacados, principalmente o da proibição de se fazer
interpretação extensiva contra o réu.
Respondendo ao questionamento título deste artigo
jurídico - “Afinal, o que significa início de cumprimento da pena para fins de interrupção
do prazo de prescrição penal?” -, tem-se que só pode ser considerado
cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo prescricional se
preenchidos 2 (dois) requisitos cumulativos: 1) que o condenado esteja preso;
2) que haja a expedição da guia de recolhimento antes do decurso do prazo
prescricional.
Notas
1. 1. GOMES, Adão Mendes. Lei de execução penal:
comentários e jurisprudência. Taboão da Serra, SP: Vicenza Edições Acadêmicas,
2020.
2. 2. CUNHA, Rogério Sanches. Execução Penal para Concursos:
LEP. coordenador Ricardo Didier. 6ª. ed. rev., atual, e ampl. Salvador:
Juspodivm, 2016.
3. 3. Regulamentando o art.105 da LEP, a Resolução
nº113 do Conselho Nacional de Justiça, de 20 de abril de 2010, que dispõe sobre
o procedimento relativo à execução de pena privativa de liberdade e de medida
de segurança, in verbis:
Art. 2º A guia de
recolhimento para cumprimento da pena privativa de liberdade e a guia de
internação para cumprimento de medida de segurança obedecerão aos modelos dos
anexos e serão expedidas em duas vias, remetendo-se uma à autoridade
administrativa que custodia o executado e a outra ao juízo da execução penal
competente.
§ 1º Estando preso o
executado, a guia de recolhimento definitiva ou de internação será expedida ao
juízo competente no prazo máximo de cinco dias, a contar do trânsito em julgado
da sentença ou acórdão, ou do cumprimento do mandado de prisão ou de
internação.
Nos
termos do §1º do art.2º da Resolução
nº113 do CNJ, estando preso o executado (condenado), a guia deverá ser expedida
pela autoridade judiciária no prazo máximo de 5 dias, a contar do trânsito em
julgado da sentença ou acórdão ou do cumprimento do mandado de prisão ou
de internação.
Entretanto,
percebe-se que tal prazo é impróprio, pois não acarreta na impossibilidade de
ultrapassado o referido prazo, haver a expedição da guia, exceto se houver a
prescrição da sanção penal.