A ex-Deputada Federal Flordelis foi condenada neste dia 13.11.2022 a uma pena de 50 (cinquenta) anos pelos crimes de homicídio triplamente qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, III e IV, do CP) em face do seu marido, Pastor Anderson do Carmo, tentativa de homicídio, uso de documento falso e associação criminosa armada.
O presente texto se limita a fazer a análise da fixação da pena do crime de homicídio qualificado consumado.
Da análise da sentença de condenação, verifica-se que o crime de homicídio qualificado consumado teve fixada uma pena final de 27 anos e 6 meses de prisão em regime fechado.
Cabe destacar que o crime de homicídio qualificado consumado possui pena mínima de 12 anos e máxima de 30 anos (art.121, Código Penal), sendo que a pena-base foi fixada em 22 anos e após a aplicação de 3 agravantes durante a 2ª fase da dosimetria da pena, com aplicação de um agravamento de ¼ (um quarto) sobre a pena inicial, restou fixada pena provisória em 27 anos e 6 meses, a qual se tornou definitiva ante a inexistência de causas de aumento ou diminuição da pena.
Da análise da sentença, verifica-se, ainda, que na 1ª fase foram negativadas duas circunstâncias judiciais, quais sejam, culpabilidade e consequências do crime, valendo registrar que além delas foram sopesadas na 1ª etapa 2 (duas) qualificadoras (das 3 reconhecidas pelo Tribunal do Júri: motivo torpe (incisos I); meio cruel (incisos III) e recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (incisos IV), todos incisos do § 2º do art.121 do CP, pois 1 (uma) delas foi utilizada como qualificadora).
Pois bem, feitos estes esclarecimentos necessários, sem mais delongas, passemos a análise do decisum, com destaque que faremos explanação com relação a 2 (dois) cenários: um com relação a fundamentação da douta sentença e outro consoante nosso entendimento.
1º cenário – Análise da fundamentação da sentença
Considerando que a sentença levou em conta 2 qualificadoras e de 2 circunstâncias judiciais na fixação da pena-base e, ainda, considerando o acolhimento da tese doutrinária que defende que para se saber o valor de cada circunstância judicial basta dividir o número de circunstâncias judiciais pelo intervalo da pena mínima e da pena máxima (no caso de homicídio o intervalo é 18, resultado da diminuição da pena mínima (12) com relação a pena máxima (30), tem-se que cada circunstância judicial deveria valer 2 anos e 2 meses.
Destarte, ante a existência de 4 circunstâncias (2 qualificadoras e de 2 circunstâncias judiciais) na análise da 1ª fase, e cada uma valendo até 2 anos e 2 meses, tem-se que a pena-base deveria ser fixada no patamar de 20 anos e 8 meses de prisão.
Com efeito, é o principio da proporcionalidade que orienta a tese doutrinária acerca de se considerar o intervalo da pena mínima e da pena máxima dividido pela quantidade de circunstâncias judiciais, bem como, ainda, ante a necessidade de se buscar um direito penal que busque reduzir e conter o poder punitivo estatal, conforme proposto por Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista (2006).
Entretanto, cabe registrar que a douta sentenciante advertiu qual o seu entendimento sobre o tema: “Assim, servindo uma destas circunstâncias para qualificar o delito e as outras para majoração da pena, sem que haja correlação necessária entre o mínimo e o máximo da pena prevista e o número de qualificadoras incidentes, como nos ensina a copiosa jurisprudência [...]” (negritei).
Já na segunda fase da aplicação da pena, considerando a aplicação do agravamento de ¼ (um quarto), conforme fixado na sentença, o que resulta num acréscimo de 5 anos e 2 meses, a pena provisória seria de 26 anos de prisão, a qual restaria definitiva, ante a inexistência de causas de aumento ou diminuição da pena.
Nesse cenário, considerando a fundamentação da sentença, a pena final (26 anos de prisão) seria um pouco abaixo da efetivamente arbitrada no édito condenatório, qual seja, a de 27 anos e 6 meses.
2º cenário – nosso entendimento
Data venia, a nosso ver a pena final seria levemente diversa da fixada na sentença condenatória, senão vejamos.
Inicialmente, com a devida venia, em que pese o acerto do decisum em utilizar uma das 3 qualificadoras para qualificar o crime de homicídio, tem-se que as outras duas qualificadoras não deveriam ter sido utilizadas na fixação da pena-base, tendo em vista que todas as 3 qualificadoras estão no rol das agravantes (art.61 do CP), razão pela qual elas deveriam serem utilizadas na aplicação da pena provisória durante a 2ª fase da aplicação da pena.
Nesse sentido, conforme já destaquei em meu livro Aplicação da Pena (2020, p.204):
Nestes moldes, havendo mais uma qualificadora, uma deve ser utilizada para a qualificação do delito e as demais como agravantes, se previstas nos arts.61 ou 62 do CP ou como circunstância judicial, caso não previstas como agravantes, tendo em vista que todas as circunstâncias devem ser consideradas no processo de fixação da pena.
Com esse mesmo entendimento, confira Cleber Masson, no seu livro Direito Penal – parte especial (art.121 a 212). 15 ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Método, 2022, p.54, frise-se, o qual inclusive informa que se trata do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), conforme RHC 114.458/MS, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, j.19.02.2013.
Destaque que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui o mesmo entendimento de que as qualificadoras remanescentes devem ser valoradas como agravantes, caso constem no rol do art.61 ou 62 do CP, conforme HC 542909/ES, rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, DJe 18.05.2020; AgRg no REsp. n. 1.644.423/MG, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, DJe 17.3.2017.
Isso porque, considerando que o processo de aplicação da pena brasileiro está disposto em que a fase posterior possui quantificação de cada circunstância em patamar mais elevando que na fase anterior, tem-se que indubitavelmente as qualificadoras remanescentes deveriam ter sido valoradas na 2ª fase, qual seja, no momento da quantificação das agravantes, pois nessa fase cada uma teria um quantum maior de valoração do que se analisadas na 1ª fase.
De fato, como já destacado, cabe relembrar que na 1ª fase (pena-base) os Tribunais Superiores (STF e STJ) tem entendido que cada circunstância em geral pode valer até 1/8, sendo que na 2ª fase o entendimento é de que cada agravante ou atenuante pode valer até 1/6, ou seja, quantum este maior que o fixado na pena-base.
Nestes termos, registre-se que a qualificadora do motivo torpe (incisos I); meio cruel (incisos III) e recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (incisos IV), todos incisos do § 2º do art.121 do CP, também são catalogadas como agravantes, respectivamente, alínea “a” do inciso II do art.62 do CP (motivo torpe; alínea “d” do inciso II do art.62 do CP (meio cruel); alínea “c” do inciso II do art.62 do CP (recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido).
Por outro lado, no que concerne às duas circunstâncias judiciais reconhecidas, tem-se que somente deveria permanecer a da culpabilidade, pois efetivamente há fundamentação da sentença quanto à maior reprovabilidade da conduta da sentenciada.
Todavia, o mesmo não acontece com relação às consequências do crime. Necessária se faz a transcrição do decisum:
Ademais, as consequências do delito se mostram desastrosas e demasiadamente graves, diante dos inquestionáveis danos psicológicos causados a toda e numerosíssima família, integrada também por menores de idade, na qual ocorreu uma "quebra", restando esta totalmente desestruturada, após a empreitada criminosa, afastando e gerando animosidades entre diversos integrantes, inclusive com a mudança de residência de alguns deles. Os danos psicológicos, em especial para os genitores da vítima, se mostraram ainda mais devastadores, posto que esta foi retirada do seio familiar precoce e brutalmente, em evidente inversão da ordem natural dos fatos, acirrando ainda mais o sofrimento de ambos, diante da brutal morte arquitetada; tornando ainda mais gravosa a conduta da acusada. [...] Destaca-se, ainda, que o bárbaro crime em tela trouxe grande abalo à sociedade como um todo.
Da análise do excerto, verifica-se que foi considerada como consequência do crime a ocorrência de danos psicológicos aos familiares em decorrência da morte da vítima, porém, para que fosse possível a negativação da circunstância nesse caso, tem-se que deveria haver laudo de psicólogo ou psiquiatra comprovando essa alegação, sendo que não houve a remissão a eventual laudo acaso existente.
De igual forma, não há prova pericial que comprove a alegação de que o “bárbaro crime em tela trouxe grande abalo à sociedade”, não sendo possível recrudescer a sanção penal sem comprovação do suposto abalo, pois isso ainda violaria o contraditório e a ampla defesa, pois como é que a sentenciada poderia recorrer de forma adequada de uma alegação sem comprovação no caderno processual?
Ademais, a menção a morte da vítima não pode ser considerada negativa no homicídio quanto a situação dos seus genitores, ante a perda do filho, pois circunstância inerente ao crime de homicídio, sob pena de bis in idem.
Como se sabe, o bem jurídico tutelado no delito de homicídio é a vida do indivíduo, razão pela qual, ante a gravidade da violação de tal bem jurídico e, assim, a causação da morte (decorrência natural no crime de homicídio) de alguém, o legislador fixou para o homicídio uma das maiores penas para os infratores da lei penal. Dissertando sobre a função limitadora do bem jurídico no que se refere à aplicação da pena, o insigne professor de Direito Penal da USP, DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO (2002, p.42) ensina que:
É defeso ao magistrado elevar a sanção, no trabalho de motivação e aplicação da pena, em razão da virulência do ataque ou da gravidade de lesão ao bem jurídico, tomando circunstâncias já consideradas no tipo incriminador. Se assim o fizer, incidirá no bis in idem, repetindo para a gravidade do crime a modalidade ou o grau de intensidade da ofensa, ambos já considerados e avaliados pelo legislador ao fixar a quantidade da pena mínima.
Ora, considerar a morte da vítima no crime de homicídio como consequência desfavorável é claro bis in idem, pois o legislador, ante as graves consequências deste crime (morte de alguém), no primeiro momento de individualizar a pena (fase legislativa), fixou para este delito uma das maiores reprimendas, basta ver o homicídio qualificado (art.121, §2º, I a V, do CP), no qual a pena mínima é de 12 (doze) anos e o máximo é de 30 (trinta) anos de reclusão.
Por esta razão, tem-se que somente deveria ser valorada na 1ª fase (pena-base) a circunstância judicial da culpabilidade, razão pela qual a pena inicial seria fixada em 14 anos e 2 meses (isso em razão do quantum de 2 anos e 2 meses para cada circunstância judicial, conforme tese doutrinária predominante).
Outrossim, em razão do reconhecimento de 3 (três) agravantes nos artigos 61, II, 'e' e 'f', e art.62, I, CP, bem como das 2 (duas) qualificadoras remanescentes (já que elas constam no rol de agravantes, conforme já demonstrado), verifica-se que devem incidir 5 (cinco) agravantes sobre a pena-base.
Há que se destacar que inexiste um quantum no Código Penal a ser dado a cada agravante ou atenuante, sendo que grande parte da doutrina entende que cada circunstância legal deve valer 1/6 (um sexto), pois se refere ao menor quantum das circunstâncias de aumento ou diminuição da pena, o que é referendado pelo STJ.
Assim, diante de uma pena-base de 14 anos e 2 meses e da incidência de 5 (cinco) agravantes, cada qual possuindo quantum de até 1/6 (um sexto), o que resulta em 2 anos e 3 meses para cada uma delas, chega-se à pena provisória de 25 anos e 7 meses de pena privativa de liberdade, a ser definitiva, ante a inexistência de causas de aumento ou diminuição da pena.
Diante o exposto, data venia, a nosso ver a pena final do homicídio qualificado consumado seria levemente diversa da fixada na sentença condenatória, seja no 1º ou no 2º cenário, o que possui relevância prática, já que mesmo um dia a mais de prisão é altamente prejudicial a qualquer sentenciado.
REFERÊNCIAS
Sentença consultada no site:
https://www3.tjrj.jus.br/consultaprocessual/#/consultapublica#porNumero Acesso em 13.11.2022
ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
GOMES, Adão Mendes. Aplicação da Pena: doutrina e jurisprudência. Taboão da Serra, SP: Vicenza Edições Acadêmicas, 2020.
MASSON, Cleber. Direito Penal – parte especial (art.121 a 212). 15 ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Método, 2022.
AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da Pena: causas de aumento e diminuição. 1ª edição. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
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