terça-feira, 5 de julho de 2011

Art. 9º da Lei de Crimes Hediondos: Revogação após a vigência da Lei nº 12.015/09?

INTRODUÇÃO
O presente texto tem como objetivo fazer uma análise sobre a possível revogação do Art. 9º da Lei de Crimes Hediondos ante a entrada em vigor da Lei nº 12.015/09 que revogou o Art. 224 do Código Penal brasileiro, dispositivo que, conforme cediço, tratava das hipóteses de violência presumida. Destarte, fará uma análise das teses doutrinárias a favor e contra a revogação do referido dispositivo.


1.0 - CRIMES HEDIONDOS
Como se sabe, a Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) veio a regular a previsão constitucional inserta no art.5º, XLIII, in verbis:


XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;


Insta salientar, que o conceito de crime hediondo não é o de ser um crime bastante perverso, brutal, que causa comoção nas demais pessoas, mas apenas o que a lei dizer, ou melhor, elencar em seu rol taxativo. Portanto, somente será crime hediondo o crime que estiver expressamente arrolado na Lei de Crimes hediondos. Destarte, percebe-se que não há qualquer margem de subjetivismo para o julgador (magistrado) rotular um crime de hediondo, pois somente a lei poderá fazê-lo.
Como é sabido, o Brasil vivia uma grande onda de violência na época da elaboração da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), corriqueiramente ocorriam seqüestros, estupros etc. A sociedade brasileira estava bastante apreensiva, pois a violência estava alcançando índices alarmantes. O legislador, ao perceber a inquietação que pairava sobre toda a sociedade, achou por bem criar uma legislação dura, que tivesse como meta causar medo aos futuros criminosos e que desta forma, transmitisse aos cidadãos brasileiros o retorno da tranqüilidade ao saber que existe um diploma legal que recrudesça com os criminosos. Segundo Antônio Lopes Monteiro:

“Para tentar explicar essa pressa, o que não justifica de forma alguma as imprecisões contidas e os conflitos gerados, devemos entender o momento de pânico que atingia alguns setores da sociedade brasileira, sobretudo por causa da onda de seqüestros no Rio de Janeiro, culminando com o do empresário Roberto Medina, irmão do Deputado Federal pelo Estado do Rio de Janeiro, Rubens Medina, considerado a gota d’água para a edição da lei.
O clima emocional para o surgimento de dispositivos duros que combatessem os chamados crimes hediondos estava assim criado. A sociedade exigia uma providência drástica para pôr fim ao ambiente de insegurança vivido no País. O Governo precisava dar ao povo a sensação de segurança” (p.4).

O desiderato precípuo da Lei de Crimes Hediondos foi o de “endurecer o jogo” com os criminosos, porquanto a supracitada lei trouxe várias restrições aos acusados ou condenados pela prática de tais crimes, como, principalmente pela vedação da progressão de regime, garantia esta que é dada aos condenados pela prática de outros delitos, que não sejam hediondos.
Progressão de cumprimento da pena é o direito que todo preso tem de após o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena, passar para um regime mais benéfico, como passar do regime fechado para o semi-aberto, por exemplo.
Segundo a Lei de Execuções Penais, todo condenado tem direito a progressão de regime após ter cumprido 1/6 (um sexto) da pena a ser cumprida, ou seja, se alguém fora condenado a uma pena de 30 (trinta) anos, após o cumprimento de 5 (cinco) anos poderá passar a um regime mais benéfico.
No mesmo sentido, a Lei de Crimes hediondos vedou a liberdade provisória, que no tocante ao assunto, vale consignar o pensamento do eminente professor Paulo Rangel:


"A Lei n°8.072/90, que define os crimes hediondos e determina outras providências, veda, expressamente, a liberdade provisória (com ou sem fiança), pois entendeu o legislador que os crimes descritos no art. 2° são graves e, portanto, incompatíveis com a liberdade provisória. Pensamos que o legislador retira do juiz a discricionariedade de verificar se a prisão é ou não necessária diante das provas carreadas aos autos, pois o sistema do livre convencimento, que tem como função primordial restituir o juiz à sua própria consciência, sofre uma exceção neste caso. O juiz terá que negar a liberdade provisória, mesmo não sendo necessária a prisão do acusado, pelo simples fato de ser crime hediondo. E o pior: o Promotor de Justiça é quem irá decidir se denuncia no crime hediondo, e neste caso não se admite liberdade provisória, ou, se denuncia no homicídio simples, admitindo tal benefício. O legislador cria, por absurdo, a manutenção obrigatória da prisão em flagrante. Trata-se, assim, de uma presunção legal de necessidade da prisão." (Direito Processual Penal, 6ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002)


1.1 - ART. 9º DA LEI Nº8.072/90
Consoante este dispositivo da LCH, sempre que a vítima ter uma das características elencadas no art.224 do CP, a pena a ser aplicada deverá ser aumentada de metade, in verbis:

Art. 9º As penas fixadas no art. 6º para os crimes capitulados nos arts. 157, § 3º, 158, § 2º, 159, caput e seus §§ 1º, 2º e 3º, 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, são acrescidas de metade, respeitado o limite superior de trinta anos de reclusão, estando a vítima em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 também do Código Penal.

1.2 - CONCLUSÃO.
No que tange à aplicação do art. 9º Lei de 8.072/90 (Crimes Hediondos), mesmo após a revogação do art.224 do CP, cumpre destacar que há duas correntes a respeito de tal temática.
A primeira corrente defende que não houve a revogação tácita, pois esta ocorre no momento em que uma nova lei é com a anterior incompatível ou quando disciplina inteiramente a matéria de que tratava a anterior. Os defensores desta corrente afirmam que não foi o que aconteceu com o art.9º da LCH, porquanto em momento algum fez menção aos crimes sobre os quais incide a citada causa de aumento, tendo por escopo do novo tratamento aos crimes sexuais.
Os defensores desta corrente, afirmam ainda, que o Principio da legalidade não foi violado, posto que o legislador nunca teve a real intenção de afastar a incidência da causa de aumento de pena, pois se fosse sua real vontade, teria de feito de forma expressa.
A segunda corrente, liderada por Guilherme de Souza Nucci, frise-se, a nosso ver, é a mais adequada. Ela prega que, uma vez que o legislador revogou de forma expressa o art.224 do CP, e não tendo reformulado o art. 9º da LCH, acabou por revogar de forma tácita o aumento de pena em análise. Tal pensamento se funda na idéia de que com a revogação do art.224 todo e qualquer dispositivo legal que se refira a ele deve necessariamente deixar de existir.
No mesmo sentido, tem-se que levar em consideração o Princípio da segurança jurídica, que, segundo o magistério de Regis Prado, visa

“refutar qualquer imprevisibilidade ou incerteza no que diz respeito ao controle legal a que o indivíduo se encontra submetido. De acordo com esse princípio, carece o direito penal dar certeza quanto a aplicação de suas normas de forma que não venha ferir os direitos fundamentais do homem, desta forma, não se pode aplicar uma norma que até mesmo deixou de existir no Código Penal, tendo em vista que a segurança jurídica que o direito penal busca proporcionar para a sociedade estaria gravemente ameaçado".

Portanto, a melhor solução a ser aplicada é o entendimento de que o art. 9º da 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) foi tacitamente revogado em consequência da revogação expressa do art.224 do CP pela Lei nº 12.015/09. Destarte, o silêncio do legislador quanto ao art.9º da LCH, deve ser aceita como revogação tácita, ensejando a retroatividade da lei penal mais benéfica.
Contudo, com o objetivo de suplantar tal controvérsia, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no voto da lavra do Ministro FELIX FISCHER, julgou que o art.9º da Lei de Crimes Hediondos fora revogado tacitamente pela vigência da Lei nº12.015/09. Confira a ementa do voto do Ministro FELIX FISCHER no julgamento do Recurso Especial nº 1.102.005 - SC (2008/0257085-1):


PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO.
AUMENTO PREVISTO NO ART. 9º DA LEI Nº
8.072/90. VIOLÊNCIA REAL E GRAVE
AMEAÇA. INCIDÊNCIA. SUPERVENIÊNCIA
DA LEI Nº 12.015/2009.
I - Esta Corte firmou orientação de que a
majorante inserta no art. 9º da Lei nº 8.072/90, nos
casos de presunção de violência, consistiria em
afronta ao princípio ne bis in idem. Entretanto,
tratando-se de hipótese de violência real ou grave
ameaça perpetrada contra criança, seria aplicável a
referida causa de aumento. (Precedentes).
II - Com a superveniência da Lei nº
12.015/2009 restou revogada a majorante prevista
no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não sendo
mais admissível a sua aplicação para fatos
posteriores à sua edição. Não obstante, remanesce
a maior reprovabilidade da conduta, pois a matéria
passou a ser regulada no art. 217-A do CP, que
trata do estupro de vulnerável, no qual a
reprimenda prevista revela-se mais rigorosa do que
a do crime de estupro (art. 213 do CP).
III - Tratando-se de fato anterior, cometido
contra menor de 14 anos e com emprego de
violência ou grave ameaça, deve retroagir o novo
comando normativo (art. 217-A) por se mostrar
mais benéfico ao acusado, ex vi do art. 2º,
parágrafo único, do CP.
Recurso parcialmente provido (negrito nosso).


Diante o exposto, segundo o entendimento do STJ, o art. 9º da Lei de 8.072/90 (Crimes Hediondos) não se aplica mais, pois, a Lei 12.015/09 revogou o arcaico art. 224 do Código Penal que apresentava as hipóteses de presunção de violência.



REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, v.1: parte geral. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007;
MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008;
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei º12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009;
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal: parte especial. V.4. São Paulo: Atlas, 2004;
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 6ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2002.

Um comentário:

  1. Colega,

    Filio-me ao entendimento de que o art. 9º foi tacitamente revogado - ao menos no que concerne aos delitos sexuais.
    Não mais temos o art. 214 e, uma vez que se criou o tipo 217-A, é impossível que haja cometimento do crime do art. 213 contra as pessoas do 224 (agora do 217-A).
    Outrossim, uma vez que a 12.015 não alterou a redação do art. 9º, o 217-A não é alcançado por aquela disposição.
    Em verdade, a criação do 217-A (muito provavelmente) busca justamente efetivar aquela disposição. Veja que a pena máxima aqui é justamente a do 213 aumentada à metade.
    Estou inclusive escrevendo que a combinação dos arts. 213 (ou do 214) com o art. 9º da 8.072 é a única situação que admite aplicação retroativa da 12.015 em crimes contra menores de 14 anos sem que haja extinção da pena.

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