É possível que no Brasil uma conduta seja considerada infração penal sem lei anterior que a defina?
Como se sabe, desde as primeiras aulas de Constitucional nos bancos das faculdades de Direito, aprende-se desde logo que a resposta é negativa à pergunta feita acima, tendo em vista a regra expressa do inciso XXXIX do art.5º da Constituição Federal de 1988, que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Destaque-se, que o citado inciso XXXIX do art.5º da CF/88 está no rol de direitos fundamentais da nossa Constituição Federal, frise-se, inexistindo na Carta Magna exceção ao princípio da legalidade penal.
Com efeito, até então esta parecia ser a resposta a ser respondida à pergunta do 1º parágrafo deste texto.
Contudo, desde 13.06.2019, após o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº26, ao que tudo indica em Terra Brasilis há pelo menos uma possibilidade de criminalização de uma conduta sem que exista uma lei anterior que a defina, qual seja, no caso de atos discriminatórios contra pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+, isto é, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros).
O STF fixou a seguinte tese:
Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”); (STF, Plenário, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello. J.13.06.2019).
Destarte, conforme decido pelo STF, atos de discriminação em face de pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+) encontra adequação típica (criminalização) no art.20 da Lei nº7.716/1989 (Lei dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor), o qual dispõe ser crime a conduta de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, cuja pena é de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
Data máxima vênia, com todo o respeito ao STF, a nossa CF/88 não implementou mandado de criminalização com relação a condutas homofóbicas e transfóbicas, senão vejamos.
O STF se reportou a supostos mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República para fundamentar sua decisão.
Entretanto, quanto ao inciso XLI, ao contrário do quanto exposto pelo STF, ele não trata de matéria penal, dizendo apenas que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
Perceba-se que este inciso XLI, ao contrário dos incisos XLII, XLIII e XLIV, nada fala acerca de matéria penal/crime, o que demonstra que ele não versa sobre esta temática e, frise-se, muito menos se refere às condutas homofóbicas e transfóbicas.
Em verdade, os únicos mandamentos de criminalização e ou reforço aos já existentes previstos na CF/88 se referem aos incisos XLII, XLIII e XLIV. Explica-se.
O inciso XLII do art.5º da CF/88 estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
No seu turno, o inciso XLIII do art.5º da CF/88 dispõe que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
De igual modo, o inciso XLIV do art.5º da CF/88 estabelece que constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Observe que em nenhum destes três incisos há qualquer menção a condutas criminosas em face de pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+), o que demonstra inexistir, sem sombra de dúvidas, um mandamento de criminalização, ao contrário do quanto afirmado pelo STF.
Se não há mandamento constitucional de criminalização, não há que se falar em omissão a ser sanada pelo Poder Legislativo Federal (Congresso Nacional).
Com efeito, considerando o princípio da legalidade penal (inciso XXXIX do art.5º da CF/88), o qual não admite exceções em prejuízo do réu, conforme se observa da nossa Constituição Federal, tem-se que não andou bem o STF ao admitir a criminalização de atos discriminatórios contra pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+) com base no art.20 da Lei nº7.716/1989 (Lei dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor).
De fato, a prática de atos discriminatórios contra pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+) já era típica em face do art.140 (crime de injúria), que protege a honra subjetiva da vítima, o qual dispõe que é crime injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa.
Assim, a decisão do STF considerou típica uma conduta sem que exista previsão legal, em clara violação à garantia fundamental do inciso XXXIX do art.5º da Constituição Federal de 1988, que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Mas os efeitos (deletérios) do julgamento do Supremo não pararam por ai, pois além de considerar criminalizada uma conduta sem que exista previsão legal, fazendo vista grossa à garantia do inciso XXXIX do art.5º da Constituição Federal de 1988, o crime do art.20 da Lei nº7.716/1989 (Lei dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) é inafiançável e imprescritível, nos termos do inciso XLII do art.5º da CF/88, o qual dispõe que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
Paulo Queiroz (2010) ensina que os princípios penais, dentre eles o da legalidade, existem e se justificam histórica e constitucionalmente como garantia política do cidadão em face do Estado, pois só pode ser considerada crime a conduta assim considerada pela lei penal.
No mesmo sentido, o consagrado penalista, Cezar Roberto Bitencourt (2020), ensina que:
Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente.
De igual forma, no meu livro Aplicação da Pena (2020, p.40), destaquei que:
O princípio da legalidade penal informa que somente por meio de lei em sentido estrito é que pode uma conduta ser tipificada como infração penal, seja crime ou contravenção penal.
Isto porque, o princípio da legalidade constitui em garantia individual do cidadão em face do Estado, pois uma conduta só poder ser rotulada de delituosa acaso decorra de projetos de leis aprovados pelo Poder Legislativo, o qual possui a função típica de legislar.
Por esta singela razão, isto é, necessidade de observância ao princípio da legalidade penal, tem-se que não andou bem o Supremo ao admitir a criminalização de atos discriminatórios contra pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+) com base no art.20 da Lei nº7.716/1989 (Lei dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor).
Em outras palavras, somente o Poder Legislativo Federal tem a competência constitucional para legislar sobre direito penal (art.22, I, CF/88). Desta forma, enquanto não aprovada lei ordinária que verse sobre o tema, não deveria ser considerado crime a prática de atos discriminatórios contra pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+) com base no art.20 da Lei nº7.716/89.
Um ponto do acórdão merece transcrição (item 59, p.299):
59. Não se trata aqui da criação de condutas criminosas pela via judicial, de tipificação por analogia ou de analogia in malam partem.
Trata-se, na verdade, de reinterpretar o conceito de raça de forma consentânea com a definição que o STF lhe atribuiu há mais de quinze anos, quando afirmou que “o racismo é antes de tudo uma realidade social e política” que cabe ao Direito coibir [31]. O âmbito de incidência da norma, a definição do crime e a fixação da pena são pré-existentes.
Apesar disso, como a interpretação que ora se fixa não é a prevalecente até o momento, penso que, como decorrência do princípio da segurança jurídica, não deve retroagir em prejuízo de possíveis réus. Por isso, essa decisão deve ser aplicada apenas a condutas praticadas após a conclusão deste julgamento. (negritei)
Em relação à analogia in malam partem, Cleber Masson (2020, p.106), ensina que: “[...] é aquela pela qual aplica-se ao caso omisso uma lei maléfica ao réu, disciplinadora de caso semelhante. Não é admitida no Direito Penal, em homenagem ao princípio da reserva legal”.
Ora, se inexiste uma lei prevendo expressamente a criminalização de atos discriminatórios contra pessoas homoafetivas ou transexuais (LGBTI+), em respeito ao princípio da legalidade penal, não se pode considerar tais atos como criminosos, pouco importando a nomenclatura deste proceder, seja suposta interpretação conforme a Constituição ou analogia in malam partem.
No âmbito jurídico-penal, há apenas uma regra muito simples e, frise-se, que não comporta exceção em desfavor do réu, prevista no inciso XXXIX do art.5º da CF/88, chamado de princípio da legalidade, que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Dito de outra forma, ou existe lei penal criminalizando expressamente uma conduta ou o fato é atípico – se não puder se subsumir a uma outra infração penal -, posto que em respeito à garantia fundamental do princípio da legalidade penal, não é possível a criminalização de uma conduta por meio de interpretação conforme a Constituição ou analogia in malam partem.
Nesse sentido, Gustavo Badaró (online) leciona que:
Depois de toda a defesa da legalidade, e da impossibilidade de o Supremo Tribunal Federal criar tipo penais, o voto do ministro Celso de Mello, no que acaba de ser acompanhado por seus pares, realizou um verdadeiro truque de ilusionista: não é possível criar um tipo penal, mas é possível utilizar um tipo penal já existente, para considerar crime algo que nele não está descrito.
Isto porque, no nosso ordenamento jurídico, somente a lei penal pode tipificar infrações penais, ou seja, nenhum outro instituto jurídico pode criminalizar condutas, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade penal.
Em verdade, observa-se que o STF realizou verdadeiro “salto triplo carpado” linguístico, pulando – no sentido de não observar, deixar de lado mesmo - o princípio da legalidade penal (inciso XXXIX do art.5º da CF/88), ao afirmar que não realizou analogia in malam partem, mas apenas interpretação conforme a Constituição, frise-se, a qual também não deve ser aceita para criminalizar condutas, o que somente pode ser feito por meio de lei aprovada pelo Poder Legislativo Federal, tendo em vista o princípio da legalidade, o que não aconteceu com relação ao julgamento da ADO nº26.
Diante o exposto, infelizmente, é de se concordar com Gustavo Badaró, quando conclui que “Não temos mais, portanto, garantia da legalidade no direito penal! Descanse em paz nullum crimen, nulla poena, sine lege.”
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo. Legalidade penal e homofobia subsumida ao crime de racismo: um truque de ilusionismo. Disponível em: https://www.academia.edu/39348378/Legalidade_penal_e_a_homofobia_subsumida_ao_crime_de_racismo_um_truque_de_ilusionista_Ao_julgador_cabe_interpretar_a_lei_mas_n%C3%A3o_a_reescrever?fbclid=IwAR2bu3NS_0RFPD5pFgx32SztjJWJdJQS4vuoOlZfe5hGph1ITje5PT4QLZw . Acesso em 19.05.2021.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1. 26ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
GOMES, Adão Mendes. Aplicação da Pena: doutrina e jurisprudência. Taboão da Serra, SP: Vicenza Edições Acadêmicas, 2020. Link para a compra do livro: https://livrariavicenza.com.br/produto/aplicacao-da-pena-comentarios-e-jurisprudencia/
MASSON, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – vol. 1. 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal: parte geral. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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